Igreja e preservativo: Vaticano condena «insultos» contra o Papa

O jornal do Vaticano, “L’Osservatore Romano”, condena em editorial a onda de críticas que se abateu sobre Bento XVI por causa das suas declarações contra o uso do preservativo na prevenção da SIDA, “uma doença que é uma prioridade dramática para o continente africano”. “É possível discordar da visão católica, com certeza, mas o que justifica – como se fez – que se criem polémicas até chegar ao insulto e à distorção dos factos?”, pergunta o director do jornal, Giovanni Maria Vian. O editorial, intitulado “Uma outra viagem”, defende que a viagem do Papa tem uma avaliação diferente em África do que na Europa, frisando que “só quem está longe pode pensar que a Igreja não está a fazer tudo o que se pode fazer” no combate ao HIV/SIDA. Giovanni Maria Vian aponta o dedo a “novos e velhos colonialismos, mesmo culturais”, que exploram “toda a África”. Sobre a polémica em torno das declarações de Bento XVI sobre o uso do preservativo, D. Jorge Ortiga, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) disse à Agência ECCLESIA ser redutor analisar a viagem do Papa tendo em conta apenas essa declaração: “Corre-se o risco de se falar apenas dessa questão, quando na realidade o Papa vai trazer uma mensagem mais vasta, complexa, com desafios e interpelações. É redutor fixarmo-nos apenas numa frase que se diz, quando a Igreja tem uma missão mais vasta e a própria viagem do Papa tem outras motivações”. Ao defender que a distribuição mais ou menos generalizada de preservativos não soluciona o problema (ver notícias relacionadas), Bento XVI limitou-se a reafirmar uma posição que defendeu sempre. Pouco tempo após ser eleito, em Junho de 2005, o Papa dizia aos Bispos da África do Sul que “o ensinamento tradicional (baseado na abstinência, na castidade e na fidelidade, ndr) da Igreja provou que constitui o único caminho seguro para impedir a propagação do HIV”. Em Portugal, D. Januário Torgal Ferreira voltou a assumir a opinião de que “há situações tão graves de doença que justificam utilizar os métodos que os médicos advogam, para respeitar também a vida”. Em entrevista ao “Açoriano Oriental”, o Bispo das Forças Armadas e de Segurança precisou, contudo, que “o problema é que o preservativo é visto como uma forma fácil de alguém começar a calcorrear os caminhos de uma sexualidade desviada”. O secretário da CEP, Pe. Manuel Morujão, defendeu à Lusa que “existe compreensão para os casos que não possam cumprir o que a Igreja dita como sendo ideal. Há essa tolerância, mas a compreensão dos casos particulares não deve baixar a fasquia da exigência”. D. António Vitalino, Bispo de Beja, diz na sua nota semanal para a “Rádio Pax” que “muitos responsáveis de governos, sobretudo europeus, incluídos alguns portugueses, resolveram pegar nessa notícia distorcida e incompleta para tecer duras críticas à Igreja e ao Papa, esquecendo toda a obra de evangelização e de promoção cultural, social e sanitária desenvolvida pela Igreja católica e suas instituições, sobretudo nos países pobres onde há liberdade religiosa e se permite às Igrejas desenvolver a sua actividade”. “Talvez com essas reacções estes responsáveis queiram abafar o pouco que fazem pelo desenvolvimento deste continente, por vezes com métodos de nova colonização, explorando as suas matérias-primas, por um lado, e, por outro, inundando-os de subprodutos industriais e poluentes”, atira. Segundo D. António Vitalino, “na sua resposta o Papa não disse que era contra o preservativo, mas sim que esta praga não se combate só com slogans publicitários do preservativo, pois é um problema de fundo da educação e da pessoa humana”. “A humanização da sexualidade, o respeito pela dignidade das pessoas, a fidelidade conjugal, a ajuda aos doentes, a luta contra o comércio sexual e a escravidão da mulher, são remédios muito mais profundos que as técnicas da indústria dos países desenvolvidos, comercializadas e impostas aos pobres do terceiro mundo”, indica o Bispo de Beja. Esta ideia de que o preservativo pode ser uma espécie de “violência cultural” imposta a uma África que nunca teve mentalidade contraceptiva está presente no pensamento do Papa. O Pe. Jorge Cunha, professor de Teologia Moral e director-adjunto da UCP (Porto), indicou à RR que “a única maneira que a Igreja entende a respeito da sexualidade é uma vivência da sexualidade no contexto do Amor e, portanto, não tem qualquer sentido usar o preservativo”. “Os meios de comunicação social ficam irritadíssimos, porque dizem que o Papa permite e incentiva comportamentos de risco que levam à morte das pessoas, quando ele está a pensar noutro registo: «eu, em nome da Igreja, nunca posso dizer que se pode viver anarquicamente a sexualidade». O sexo só faz sentido no Amor – é o que Bento XVI quer dizer”, concluiu. Em 2001, a Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma nota a respeito do drama da SIDA, afirmando claramente que “a fidelidade conjugal ou ao parceiro que se elegeu para partilhar a vida, a castidade como expressão de uma vivência equilibrada e generosa da sexualidade, são elementos decisivos na luta contra este flagelo”. “Na prevenção têm-se privilegiado os métodos da «barreira física», que isola o contacto dos corpos na intimidade sexual, que é, em si mesmo, um encontro plenificante de todo o ser. Não pensamos que a luta contra esta ameaça possa ser vencida sem mobilizar as liberdades e as consciências, levando a uma real transformação dos comportamentos”, apontavam então os Bispos, recordando “as reticências da moral católica em relação ao uso generalizado do preservativo, porque ele significa uma alteração profunda do sentido e da dignidade da sexualidade humana”. “Nenhuma razão pode levar a Igreja a deixar de afirmar claramente essa verdade, pois só ela pode atrair as pessoas para novas etapas de responsabilidade e generosidade”, observava a CEP. Entre Roma e África Os religiosos e religiosas da Igreja Católica são responsáveis pelos cuidados e a assistência mais de um quarto dos doentes de SIDA em todo o mundo. Em Maio de 2008, durante o Congresso da União dos Superiores Gerais (UISG) e da União internacional das Superioras Gerais (USG), o padre Frank Monks, da Comissão para a Saúde dos organismos, afirmou que a resposta dos religiosos ao problema do HIV nem sempre foi visível, obscurecida pela atenção quase exclusiva que se reservou à questão do preservativo. “O modo dos religiosos de enfrentar a questão, pelo contrário, vai além”, disse. Os institutos religiosos estão empenhados em várias frentes: tratamento médico, prevenção geral, prevenção da transmissão mãe-filho, cuidados dos órfãos e das famílias atingidas, assistência espiritual, educação sexual e, por fim, a pesquisa, em especial para se encontrar uma vacina contra a doença. Na África, os institutos religiosos não deixam de se confrontar com a questão do preservativo. A missionária comboniana Ir. Maria Martinelli explicou que os princípios da Igreja a este propósito são conhecidos, mas, na prática, considerando que os religiosos lidam com pessoas de várias religiões, culturas e etnias, “percebe-se que, em situações especiais, o preservativo é necessário”. Vários teólogos defendem esta mesma posição e algumas congregações religiosas distribuem preservativos em África para evitar a propagação de doenças como a SIDA ou a hepatite. O Bispo sul-africano Kevin Dowling também promove essa distribuição e tem sido uma das vozes mais activas em relação à necessidade de adaptar as orientações de Roma à prática pastoral. D. Filomeno Vieira Dias, coordenador da visita papal a Luanda, disse ao JN que “a sexualidade está orientada para ser desenvolvida num ambiente de responsabilidade. Por isso, havendo estes princípios, acreditamos que o preservativo só poderá ser usado em situações extremas, mas respeitando a liberdade das pessoas”. O Pe. Michael Czerny, director da rede jesuíta contra a SIDA em África, considera que este problema é particularmente complexo: “O HIV reduz e destrói o sistema imunitário, mas é também uma realidade cultural, familiar, comunal e espiritual”. “Os ocidentais sentem que o preservativo é o mínimo que pode fazer, em termos de responsabilidade. Mas isso é tornar a sexualidade numa escolha muito individualizada”, indica, antes de precisar que “em África, a expressão sexual raramente é consensual e muitas vezes é por coacção”, especialmente no caso de homens mais velhos e jovens raparigas. Segundo este responsável, “a SIDA é uma parte de toda uma síndrome de injustiça” que impedem a África de encontrar “o seu lugar justo na economia mundial”. No Vaticano encontra-se ainda “em estudo” um documento sobre toda esta temática, que fora anunciado em 2006 pelo Cardeal Javier Lozano Barragán, presidente do Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde, dizendo então que o mesmo abrangia a diversidade de opiniões sobre o uso do preservativo como forma de prevenir a SIDA. O Conselho Pontifício não tem competências doutrinais, apenas competências pastorais, pelo que o seu estudo tem de ser analisado pela Congregação para a Doutrina da Fé, onde o processo abrandou. O serviço de informação da Conferência Episcopal nos EUA cita fontes da Cúria Romana para afirmar que o Vaticano considera ser prematuro oferecer uma posição global sobre os aspectos teológicos e pastorais do uso do preservativo, “em parte porque não há unanimidade de opiniões” e também porque muitos acreditam que a discussão de nuances teológicas apenas irá convidar à confusão. 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