Homilia na celebração da Paixão do Senhor de D. Manuel Clemente, na Sé de Lisboa

Pelas suas chagas fomos curados

Caríssimos irmãos e irmãs

Em Sexta-feira Santa, quando tudo nos encaminha para a Cruz do Senhor, detenhamo-nos no trecho de Isaías que serviu aos primeiros cristãos para aceitarem a morte de Jesus e o seu significado. Ouvimo-lo há pouco: «Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados.»

Não foi nada fácil aos que tinham seguido Jesus desde a Galileia e visto os seus milagres assistirem ao que ouvimos na narração da Paixão. Esperavam a realização das profecias messiânicas, mas em triunfo e glória e não com tanta humilhação e dor.

Tudo parecia desmentir o que esperavam dele e só o foram compreendendo a partir do túmulo vazio que lembraremos depois. Também à luz de textos como o que ouvimos, que a tradição profética guardara, mas tinham permanecido algo enigmáticos.

Era realmente muito estranho, um Messias assim. Ainda hoje o é, não só para a grande maioria do seu próprio povo, como para a história religiosa da humanidade, que não integra outro Deus igual.

No entanto, foi precisamente desse modo e daqui não podemos desviar o olhar nem o coração. Jesus salvou-nos bem por dentro do nosso drama, compartilhando-o inteiramente e fazendo-nos companhia onde mais precisamos de a ter, mesmo na injustiça mais sofrida e na dor mais atroz. Tudo isto fez seu, para o entregar nas mãos de Deus Pai e nos remir à sua custa.

A própria Cruz tardou algum tempo em impor-se como sinal cristão. São Paulo, ao escrever que se gloriava na Cruz do Senhor foi um precursor desse caminho, que ainda assim encontraria resistências, pois era considerado maldito o que morresse num madeiro.

Porém, a coincidência da profecia de Isaías com aquilo que a nossa existência tem de mais dramático e direta ou indiretamente nos toca a todos acabou por convencer as primeiras gerações cristãs de que a redenção só poderia acontecer deste modo, quando em Cristo a dor humana e o amor divino acabassem por ser uma coisa só.

Na tradição portuguesa, temos as chagas de Cristo por brasão e posso acrescentar que com elas muitos de nós temos encontrado ao longo dos séculos algum sentido para a dor que sofremos, pessoal ou coletivamente. Creio mesmo que o sentido redentor que o sofrimento pode alcançar, quando unido ao de Cristo, para a salvação dos outros, é a marca mais profunda que a evangelização deixou entre nós.

Assim o tenho ouvido da boca de muitos, que, unidos à paixão de Cristo, encontram sentido para o que padecem e não teria outra solução. Ainda recentemente o testamento espiritual do nosso saudoso D. Daniel é um exemplo magnífico disto mesmo. E posso acrescentar que algo semelhante ouvi a clérigos e leigos atingidos por doença mortal ou muito grave. Trata-se do realismo cristão mais essencial e de amor desinteressado e em estado puro.

É demasiado fácil sentir-se “salvo” quando tudo corre bem, ou quando nos alheamos da vida como ela é, em nós e nos outros. Também não chega pedir com compreensível interesse que as coisas nos corram sempre bem, com alguma intercessão celeste. Mais tarde ou mais cedo, a realidade impõe-se a cada um, como sempre se impõe a quem esteja atento à infelicidade alheia.

Mas Jesus é Emanuel, que quer dizer “Deus connosco”, e precisamente aí onde precisamos de ser recriados com o mesmo amor divino que nos trouxe à vida. Aconteceu na Cruz, que não rejeitou para salvar a própria cruz do mundo, feitas uma coisa só nele mesmo, unido inteiramente a nós e unido absolutamente a Deus Pai, eterna fonte de vida.

Essa mesma vida que lhe jorrou do peito aberto em inextinguível sangue e água, que sacramentalmente recebemos. Esse mesmo amor com que “expirou” e agora nos renova no Espírito divino.

Nos dias que correm e nas tristezas que nos tocam, na Igreja, no mundo ou na vida que nós e os outros levamos, não percamos nunca de vista a Cruz que nos congrega. Essa mesma da qual esteve pendente a salvação do mundo.

Foi o sinal que recebemos no Batismo, é o sinal com que nos benzemos e persignamos tantas vezes, é a marca da salvação que ganhámos e repartimos. Uma vida autenticamente cristã é uma vida em forma de cruz, como Jesus nela se entregou a Deus Pai e como nela se expandiu para todos. Sim, para todos, tanto para o bom ladrão que o ladeava como para a sua Mãe e quem mais ali estava. E eram apenas o princípio da multidão que se acrescentou até hoje, neste imenso Gólgota do mundo.

Quando algum laicismo tenta apagar os símbolos religiosos dos lugares públicos, atingindo com isso a própria Cruz, não sabe o que faz nem se apercebe do que priva tanta gente, que ganharia em conhecê-la e ao seu verdadeiro significado.

Mas também nós, quando nos afastamos da Cruz e não lhe damos o devido relevo, quer na vida quer nos espaços de culto, ou quando não fazemos do seu anúncio o ponto central da catequese ou do discurso, privamos os outros do que temos de mais essencial como redenção propriamente dita.

Nada conseguirá apagar o drama humano e nada o redime como a Cruz do Senhor, donde brota a vida. Estejamos com Jesus onde ele nos salva, estejamos com Ele mais próximos de todos, sobretudo dos que mais sofrem no corpo ou no espírito. «Abracemos a cruz da vida à luz pura do seu rosto». Não fujamos dela, salvemo-nos com ela, onde Jesus nos redime.

Como nalguns crucifixos, a Cruz tem um resplendor que anuncia a salvação que nos oferece. E deslumbra-nos ver como a Cruz da JMJ, tão simples e despojada como é, vem congregando tantos jovens de diocese em diocese, sem precisar de mais nada senão dela mesma e da atração que exerce. É um exemplo por demais eloquente da vida que irradia.

É também um “sinal dos tempos”, que bem precisam dela para se renovarem agora. As próprias chagas que o Ressuscitado mostrou a Tomé, essas mesmas com que O cravaram no madeiro, recordam que a ressurreição passa pela Cruz, como a vida que se ganha quando se oferece. Porque «pelas suas chagas fomos curados»!

Sé de Lisboa, 7 de abril de 2023

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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