Homilia do Cardeal Saraiva Martins na celebração aniversário do cinquentenário do Cristo Rei

1. A ideia de erigir sobre Lisboa um monumento à semelhança do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, tornou-se projecto nacional com o voto dos Bispos portugueses em Fátima, a 20 de Abril de 1940, segundo o qual se comprometiam, caso Portugal não entrasse na guerra, a mandar erguer sobre a capital “um monumento ao Sagrado Coração de Jesus”. Tendo o nosso país sido poupado à maior, à mais sangrenta e monstruosa guerra da história da humanidade, o voto foi cumprido. Este monumento é, pois, um ex-voto tornado santuário nacional, em preito de gratidão a Deus pelo dom da paz. Construído com a colaboração de muitos — e também graças à renúncia e partilha de milhares de crianças — é um gesto colectivo da Igreja de Portugal, que exprime a comunhão entre todos os seus filhos, pastores e leigos. A este gesto nos associamos também nós hoje, aqui reunidos para celebrar o primeiro cinquentenário da sua inauguração, a 17 de Maio de 1959, então Domingo de Pentecostes. Fazemo-lo numa expressão de reiterada gratidão nacional, mas também de renovado empenho pessoal, comunitário e eclesial, cujo significado nos é indicado pela Palavra de Deus, em especial, pelos textos da presente liturgia eucarística. 2. As leituras que acabámos de escutar situam-nos desde logo no centro da nossa fé: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Porque Deus é amor” (iJo 4, 7-8). “Deus é amor”. Como é verdadeira, densa de significado esta definição lapidar de Deus! “Amar” “é querer bem ao outro, como o seu maior bem, e querer o bem do outro, como se do próprio bem se tratasse”. “Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo”, como dizia Santa Teresa de Lisieux (Poesia 54,22). É assim que Deus ama. Ele tomou a iniciativa de nos fazer participar da Sua vida. Para isso enviou o Seu Filho, a fim de nos comunicar o seu amor, esse amor que Jesus testemunhou até ao fim da sua vida, dando-se por nós na Cruz. Um dom que passa a ser realidade pessoal, íntima e vivificante, do crente no dom do Espírito Santo, tal como afirma São Pedro na primeira leitura (cf Act 10,47). Mas para que o amor seja completo, ele deve ser recíproco. O amor requer uma resposta. Dela nos fala o Evangelho. 3. “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei’ Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Jesus começa por apontar o amor do Pai como sendo a fonte, o modelo e horizonte do seu amor. Ora é próprio do amor oferecer comunhão, partilhando a própria vida e intimidade. Jesus chama-nos “amigos”, porque nos faz participantes da sua intimidade com o Pai. E urge connosco para que dela façamos a referência constante da nossa vida. “Permanecei no meu amor”. Tal é o primeiro desejo expresso por Jesus, porque tal é também o primeiro imperativo do amor, do verdadeiro amor, do amor de Cristo, do amor do Evangelho. Não é esta a base da espiritualidade do Sagrado Coração de Jesus: permanecer n’Ele, fazendo da oração contínua, entendida como união perene a Cristo, o alicerce da vida cristã? Assim o compreendeu e fez a grande difusora desta devoção, Santa MargaridaAlacoque, cujas relíquias peregrinas no nosso país se encontram hoje aqui presentes nesta celebração. Deste imperioso dever é símbolo eloquente o monumento a Cristo Rei. Dedicado ao Coração de Jesus, a quem, juntamente com o Imaculado Coração de Maria, o Episcopado português consagrou há cinquenta anos a nação portuguesa, ele foi erguido como “sinal visível de como Deus, através do amor, deseja conquistar para Si toda a humanidade”, segundo o voto expresso pelos mesmos prelados em Fátima, os quais o dedicaram a “Cristo Rei”, designação pela qual é hoje conhecido por todos. E com razão, queridos irmãos e irmãs! Porque Cristo é deveras Rei! Não em sentido político ou triunfalista (cf Jo 18,36), mas no sentido bíblico do termo. Na realidade, na Sagrada Escritura, “Rei” designa o chefe que guiava o povo, o acompanhava nos seus projectos, participando das suas dificuldades, expondo por ele a sua vida, governando-o com amor, justiça e equidade. É neste sentido que Cristo é Rei: porque Ele nos amou, dando a sua vida por nós, nos acompanha e se interessa por nós com real afecto e amor, unindo-se a nós numa íntima comunhão pessoal que, neste caso, nem a morte pode destruir. 4. O símbolo bíblico mais significativo da figura de Cristo Rei é, sem dúvida, o seu Coração. Nos Evangelhos, o Coração de Jesus aparece em dois contextos. É, por um lado, o Coração manso e humilde de Cristo Redentor, trespassado depois de Ele ter consumado na cruz a obra que o Pai lhe confiara, abrindo-se como manancial perene de vida nova para a humanidade; e é, por outro, o Coração de Cristo ressuscitado presente no meio dos seus, mostrando-se aos discípulos como fonte de paz, e comunicando-lhes a sua mesma missão reconciliadora: “Ide e anunciai a Boa Nova a todas as criaturas”. O Coração de Jesus é pois a expressão do amor divino-humano de Cristo; sinónimo da sua Pessoa e missão; síntese da sua paixão e ressurreição; imagem da vida nova que flui do mistério salvífico de Cristo e nos é comunicada pelo Espírito Santo, sujeito primordial da missão reconciliadora da Igreja, que, no tempo, se prolonga até aos confins da terra. A devoção ao Coração de Jesus é, portanto, a devoção ao Amor, a Deus que é Amor. Que grande espiritualidade tem este Santuário! Que dom e que graça Deus e a Igreja lhe concederam: ser sinal visível do amor e dar a conhecer o Coração que ama com amor infinito a todos os que o visitam, colocando-os no Seu Coração e incendiando-os no seu amor, tornando cada peregrino apóstolo da esperança. 5. Tal simbologia está bem patente neste monumento. Elevado às portas de Lisboa, o Cristo Rei saúda diariamente milhões de pessoas que entram e saem da capital, oferecendo a todos, não só a mais bela vista sobre a capital, mas também a mais bela visão a partir da capital e dos concelhos limítrofes! Nele está representado o Coração de Jesus, rasgado, aberto em direcção aos quatro pontos cardeais da terra, para assim abarcar toda a humanidade. É um Coração exposto, propositadamente centrado no peito, para dizer que o amor a Cristo, centro da sua vida e mensagem, só será verdadeiro se, partindo do nosso íntimo, se manifestar ao nosso próximo, levando-nos a sair e a esquecer-nos de nós mesmos para ir ao seu encontro de braços abertos, para o acolher e aceitar incondicionalmente, com amizade, respeito e confiança. 6. É isto mesmo que veio recordar Nossa Senhora ao mundo em 1917. A mensagem de Fátima é, com efeito, essencialmente, uma mensagem eucarística, de amor e de paz. É esta mensagem que a Senhora “mais brilhante do que o sol” nos lembra hoje através da sua imagem, a da Capelinha das Aparições, presente agora aqui como o esteve há 50 anos, quando foi inaugurado este monumento. Maria, de facto, foi a mulher nova, a primeira discípula de Jesus, que ousou viver o mandamento novo do amor, em toda a sua radicalidade, aceitando expor a própria vida pela salvação da humanidade, ao aceitar ser Mãe de Deus, na anunciação do Senhor. Renovemos a nossa fé em Cristo Rei, no seu Sagrado Coração e no da Sua e nossa Mãe. Confiemos-lhes, de novo, o nosso País e toda a humanidade, para que o seu amor reine e o mundo tenha paz: a paz dos corações enfim reconciliados; a paz nas nossas famílias e locais de trabalho; a paz nas nossas comunidades eclesiais e em toda a Igreja; a paz no nosso País e no mundo inteiro. Este é o monumento da paz e lembra-nos que a paz é uma das exigências maiores do tempo actual, deve lembrar-nos que a paz tem de ser construída não pelos canhões, não pelas armas, mas pelo amor, pelo respeito do homem e da sua dignidade, dos seus direitos fundamentais, das suas aspirações. Só assim contribuiremos para construir realmente a paz, fundada na justiça, na verdade, não no ódio, não na desigualdade, não na desconfiança. Esta é uma lição que nos dá hoje o monumento ao Cristo Rei. Peçamos a Cristo Rei que nos fortaleça o coração, para, impelidos pelo seu amor, lutar sempre, com coragem e entusiasmo, para libertar a sociedade do nosso tempo, como se exprimem os bispos portugueses, da escravidão e da injustiça, para ser defensores da vida em todas as circunstâncias, desde o seu início até ao seu fim natural, ser capazes de perdão, estar atentos à salvaguarda da criação, ser construtores da paz e arautos de esperança. Peçamos ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria, em especial, pelos jovens de hoje, para que fortes e generosos na fé, sejam sempre, como recordava João Paulo II, as “sentinelas da manhã” e se comprometam com o Evangelho, aguardando, fortes na esperança, o alvorecer da nova civilização do amor (cf NMI, n.9), aguardando o alvorecer de um mundo novo, mais justo, mais humano e, por isso mesmo, mais cristão. Assim seja! Almada, 17 de Maio de 2009 Cardeal José Saraiva Martins

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top