Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Vigília Pascal

Não nos falta Cristo, não faltemos nós!

Celebrando a Vigília Pascal e rememorando tudo quanto o texto sagrado nos trouxe, da criação à nova criação de todas as coisas em Cristo, fazemos muito mais do que marcar uma data, ainda que sobremaneira importante.

Importante para nós, que aqui a podemos celebrar em paz; e não menos importante para os que a vivem entre a aflição da guerra, da Ucrânia a outros lugares em que a humanidade apesar de tudo sobrevive. Sobrevivência que a vitória de Cristo sobre a morte assinala e garante. Com eles estamos em oração, somando o nosso querer ao do próprio Deus da paz. Com eles permaneceremos, até que a guerra acabe e ainda depois.

Na verdade, estamos na fonte duma nova vida que nos faz reviver a nós – e por nós certamente a muitos mais, como pode e deve acontecer. A Páscoa é “passagem” de Deus por nós e passagem de tudo para Deus, que, Ele sim, é finalmente a nossa Terra Prometida, convivência eterna e comunhão perfeita.

É também surpresa, circunstanciada e total. Circunstanciada como ouvimos, naquele túmulo vazio que encheu de espanto quem o encontrou assim. Total sobretudo, porque nesse nada do que estava se assinalou o tudo que nos preenche agora: a vida ressuscitada de Cristo, que nos ressuscita também. São verdades que dizemos e cantamos com as palavras que a Liturgia nos oferece e sobretudo certezas com que Deus nos refaz.

A conotação batismal desta Vigília significa isso mesmo, com a Páscoa de Cristo a renovar-nos a nós. Assim o seguimos no percurso que fez, encontrando-o também na cruz deste mundo, como ela subsiste no drama da vida, nossa e dos outros. Aí mesmo encontramos a Cristo, para o seguirmos até ao fim.

Fim que pareceu quase nada naquele túmulo vazio e afinal foi tudo na vida que dali brotou. Porque totalmente entregue foi-nos inteiramente devolvida, como a sentimos em nós e a celebramos sempre, como se lá estivéssemos, como na verdade estamos.

Diante do túmulo vazio, concluamos que ressuscita com Cristo em Deus quem com Cristo se esvazia de si, para ser inteiramente de Deus como filho; e inteiramente para os outros, como verdadeiro irmão.

 

A tal nos conduz o Espírito batismal que perfaz o caminho de Cristo em cada um de nós. Por essa razão nos chamamos “cristãos”, porque ungidos pelo mesmo Espírito. Trata-se de algo de substantivo, que nos modifica realmente por dentro, e não de adjetivo ocasional e exterior. – Basta de “cristianismos” pretextuais e meramente decorativos, que tanto contrariam a causa do Evangelho!

Vida ressuscitada é vida que se esvazia de si, para ser preenchida pela caridade divina e assim mesmo se eternizar também, porque só a caridade nunca acabará. Foi assim com Jesus, em todo o seu percurso humano. Se pôde dizer um dia: «Eu o Pai somos um só», foi porque nada retinha de si e nada o movia que não fosse a vontade de Deus Pai, que inteiramente assumia como também sua.

Foi, nos trinta e poucos anos que viveu na terra, o que eternamente é em Deus: uma vida inteiramente recebida e inteiramente retribuída. Assim o confessamos no Credo: «Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro». O Espírito que assim o movia é o que nos oferece no batismo, para o sermos igualmente, divinizados e eternos em Deus. Deste modo foi absolutamente para todos, porque a vontade de Deus Pai é a salvação de cada um, como a atuação de Jesus sempre demonstrou. E como há de prosseguir através de quantos recebem o seu Espírito.

É este e só este o critério da santidade. Homens e mulheres de vários tempos e condições, crianças, adultos e anciãos que fossem, são venerados nos altares onde subiram porque antes desceram ao mais chão e comezinho da vida dos outros, nas variadas formas que a dedicação encontra para servir quem precisa. Esvaziados de si, como o túmulo de Cristo estava então, reviveram com Ele na caridade divina.

Tudo isto e melhor dito ouvimo-lo há pouco a São Paulo, como escreveu aos cristãos de Roma, naquele primeiríssimo tempo: «Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova».

E não é menos do que isto o que lembraremos daqui a pouco, na renovação das promessas batismais, quando “renunciarmos ao pecado, para vivermos na liberdade dos filhos de Deus”. O pecado é o egoísmo que nos retém em nós; a liberdade dos filhos de Deus é a que Cristo partilha com quem realmente viva de Deus para os outros e com os outros em Deus.

 

Infelizmente, é certo que o mundo em que vivemos e em que muitos a custo sobrevivem apresenta-se demais como sepulcro fechado, como de facto assim é por tanta morte, destruição e escombro acumulado, por guerras e outros males que não faltam. Também em muitas vidas impedidas de nascer e noutras que desesperam de viver. Também em muitas solidões e abandonos, que contrariam a verdade inquestionável de que “viver é conviver”.

Nestas e noutras situações é de sepulcros fechados que se trata e com pesada pedra a bloqueá-los. Nesta Vigília, porém, clareada numa intensa luz pascal, o sepulcro vazio já proclama a vitória da vida sobre a morte, quando a própria morte se transformar em vida, pela inteira caridade que a preencha. Assim com Cristo – e por Cristo em nós e por nós onde chegarmos.

O Evangelho dizia-nos há pouco que, vendo o túmulo vazio e apenas as ligaduras que restavam, «Pedro voltou para casa admirado com o que tinha sucedido». Também nós, que sabemos já o que o apóstolo ainda não sabia em tal momento, não perdemos decerto a admiração por tudo o que a Páscoa nos oferece na inesgotável novidade da vitória de Cristo sobre a morte.

Por isso também voltaremos admirados para casa. E admiraremos muitos mais, quando a nossa própria vida for, em Cristo, geradora de vida para os outros, sobretudo onde houver maior urgência em que aconteça. – Não nos falta Cristo, não faltemos nós!

Sé de Lisboa, 16-17 de abril de 2022

D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca

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