Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Vigília Pascal

Melhores e diferentes, para o futuro que há de ser

Ouvimos nesta vigília muitas passagens bíblicas, quase do princípio ao fim da história que nos revela Deus e nos revela a nós, no sentido primeiro e último do que havemos de ser a partir d’Ele.
Ouvimo-las certamente “de coração tranquilo”, como pediu a admonição. Digamos mesmo de coração convertido à Palavra que nos salva. Fixo-me nas primeiras e últimas passagens. A do Livro do Génesis, logo a abrir: «No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia…». E a do Evangelho de Marcos, agora mesmo, nas palavras daquele jovem vestido de branco, dirigidas a Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé: «Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui. Vede o lugar onde O tinham depositado» – o lugar era o túmulo vazio.
Terra vazia no princípio da criação e túmulo vazio no princípio da nova criação. Dois lugares iniciais e imprescindíveis para que uma e outra continuem a acontecer, na absoluta disponibilidade ao que que Deus quiser e como Deus quiser.
Assim como a criação é obra divina, mas conta com a nossa colaboração para a guardar e cultivar, a ressurreição de tudo em Cristo é obra de Deus, que se repercutirá em nós e por nós no mundo, se nos mantivermos exclusivamente seus.
O percurso humano de Jesus recapitula e recria, pela inteira obediência a Deus Pai, o que foi a história do seu Povo, padrão da história da humanidade em geral – passada, presente ou futura que seja. Foi assim, pela sua obediência inteira, que “até o vento e o mar lhe obedeceram”, os destruidores da criação foram vencidos e a própria morte deu lugar à vida.
É assim que nos ressuscita também, pelo mesmo Espírito que O moveu a Ele e, com o Batismo, nos moverá a nós. Não é algo que se acrescente, é o tudo de Deus que nos recria. No enunciado das bem-aventuranças, a primeira é precisamente a dos “pobres em espírito”, ou seja, dos que, esvaziados de si, Deus pode finalmente tomar e refazer.
Não se trata duma concorrência mal compreendida, entre nós e Deus. Trata-se da verdade das coisas, entre o absoluto divino e a relatividade humana, que há de ser entendida como única possibilidade de existirmos, distintos de Deus. Mas sobretudo princípio para o que havemos de ser, quando formos inteiramente seus, alargando em nós a humanidade que Jesus assumiu. Fê-lo para a ressuscitar, pelas “mãos do Pai” a que inteiramente se entregou. Compreendendo a liberdade como possibilidade de ser, não há liberdade maior do que a de sermos com Deus, em Deus e a partir de Deus.
Na série de leituras que ouvimos esta noite, não se tratou doutro assunto senão este: da criação divina à recriação em Cristo, passando pelas resistências nossas e a vontade persistente de Deus em nos retomar, como os profetas lembraram, Cristo realizou e Paulo explicou: «Fomos sepultados com Ele pelo Batismo, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova». Do sepulcro vazio que as mulheres encontraram ressurgiu Cristo, como ressurgimos nós, quando no Batismo se sepulta o que nos definha sem Deus.

Mais lhes disse aquele jovem vestido de branco, às mulheres que procuravam o cadáver de Jesus: «Ressuscitou: não está aqui». Não estava ali, só ali, como o tinham sepultado, porque passara a estar absolutamente e doutro modo, em todo o espaço e tempo, como o experimentamos e repetimos tantas vezes: “Ele está no meio de nós”, aqui e agora, em todo o lado e sempre.
Corpo é relação e o corpo ressuscitado de Cristo permite-lhe a ligação a todos, para nos ressuscitar também. Aqui e agora, na grande Galileia do mundo de toda a gente, em que se adianta, para nos esperar mais além.
Um além que nos desapega do que tenhamos já, para irmos ao seu encontro, na interpelação de cada instante. Durante a pandemia que nos chegou tão duramente, recolhi muitos testemunhos de abnegação, de pessoas que nos mais diversos setores serviram realmente os outros, no que à saúde, à companhia, ao trabalho e à sobrevivência diz respeito. Os que mais me impressionaram, também em linguagem crente, foram os que persistiram em fazê-lo, mesmo sem nada ou quase nada de seu, quanto a possibilidades e meios, técnicos ou outros. Foram pelo coração e a vida reapareceu.
Isto mesmo sucedeu nas comunidades cristãs, quer pelo esforço e criatividade dos seus ministros, quer por múltiplas iniciativas dos crentes, por si ou associados com outros, nas organizações sociocaritativas ou criadas ad hoc e com especial protagonismo juvenil. Partiram realmente para a Galileia dos outros, assim mesmo “vendo” o Ressuscitado nos surpreendentes sinais da sua presença.

Foi com parábolas que Jesus nos falou do que mais importa saber, de si próprio e do Pai, de nós e dos outros. Tudo tão concreto como expressivo de realidades absolutas. Assim se sucedem na vida de todos os dias os sinais de ressurreição, interpretáveis à luz da Páscoa de Cristo.
Dos muitos testemunhos orais ou escritos que recebi, transcrevo apenas um, por ilustrar com factos o que acima indiquei. Trata-se duma profissional de saúde, a trabalhar num hospital em sobrecarga e no pico da pandemia. Mais uma vez partiu de casa, pouco fiada nas suas forças para tão grande desafio. Relatando o que aconteceu nesse dia, transmite-nos três surpresas, quase parábolas do Ressuscitado, que assim mesmo encontrou em quem serviu: «Continuei a atender doentes e eis que um deles, um jovem com uma máscara na cara, ao despedir-se de mim, diz: “Nos tempos que correm, não posso deixar de agradecer a sua amabilidade, a total disponibilidade com que me atendeu. Sabe, não está a ver, mas estou a sorrir para si” […] Logo a seguir, atendo uma senhora com oitenta anos. Tinha vindo sozinha porque não tinha ninguém com ela. Ao sair, vira-se para mim e diz: “Vou rezar por si. Deus a proteja e guarde. Rezo por todos, mas agora especialmente por si, para que mantenha essa calma que consegue transmitir.” Passado pouco tempo, surge uma jovem com uma máscara amarela onde estava desenhado um enorme sorriso vermelho. Ao dar de caras com ela, assustei-me. Ela reparou e disse: “Não se assuste. Este sorriso é para si”».
Não nos pareçam coisas pequenas, indistintas quase. São, isso sim, manifestação segura da realidade pascal. Estou certo de que este ano difícil evidenciou muitas “visões” do Ressuscitado, a quem esteve atento aos outros e através deles experimentou a sua presença viva e vivificante. Para nós crentes, é confirmação da Palavra ouvida e acolhida. Sabemo-lo com outros, para testemunharmos a todos a Ressurreição de Cristo nos dramas do mundo.
Assim mesmo a esperança se preenche e tudo se recria. Isto mesmo nos refará melhores e diferentes, para o futuro que há de ser.

Sé de Lisboa, 3-4 de abril de 2021
D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca

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