Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Missa da Noite de Natal

O modo de Deus acontecer no mundo

Foto: Lusa

Celebremos verdadeiramente o Natal. Celebremo-lo sem passar depressa demais pelas palavras e pelo difícil contexto em que o fazemos este ano, tão marcado pela pandemia e as suas consequências no campo da saúde, do trabalho e da vida em geral.
É neste contexto que celebramos o Natal de Cristo. Sabemos como se tornou motivo direto e indireto de outras coisas, legítimas certamente, como a reunião familiar, as iluminações e as prendas, as saudações e os bons votos a presentes e ausentes. Ainda bem que assim foi e continua a ser, embora condicionados pelas atuais restrições. Não se reduza a boa vontade, que encontra sempre modo de chegar aos outros, pois o coração vence as distâncias.
Importa, porém, não deixar que outros motivos diluam ou encubram o que realmente originou o Natal. Muito menos que o contradigam, como se fizéssemos deste dia algo diferente do que ele foi.
Natal significa nascimento – e nascimento de Jesus Cristo. Os Evangelhos da Infância de Jesus dizem-nos o que aconteceu, no mais profundo desse acontecer. Estão envoltos em motivos bíblicos, que preenchem o significado do presépio de Belém. Se bem repararmos, o essencial é ter sido assim, de modo tão original e interpelante, hoje como então.
A originalidade do nascimento de Cristo, como admirou na altura e nos admira agora, interroga-nos a todos e esclarece os crentes sobre aquilo a que podemos chamar a surpresa de Deus neste mundo.
Reparemos que há muitos séculos se vinha desenvolvendo na tradição profética de Israel a expetativa de um Messias (= Cristo), cheio do Espírito de Deus para anunciar a Boa Nova aos pobres. Assim se apresentou Jesus, anos mais tarde, na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4, 18). Aliás, entre os próprios romanos, havia quem anunciasse a chegada duma nova idade do mundo, coincidente com o Império de Octávio César Augusto…
Grandes expetativas, mas dificilmente aproximáveis do modo, tão desprovido e simples, como Jesus nasceu, viveu e morreu. Ou como os crentes O sentem agora, bem presente nas suas vidas, tão forte como discreto “Emanuel”, que que dizer “Deus connosco” – proposta permanente e imposição nehuma.
Deus connosco, como Deus acontece no mundo e nas vidas. Não O imaginemos doutra forma, pois só nos veríamos a nós, mais ou menos sonhados e fantasiados. Fixemo-nos no Presépio e no concreto daquela situação e respetivos circunstantes.

Creio que esta fixação no presépio de Belém nos ajudará especialmente no momento atual, com as dificuldades sobrevindas e que a muitos atingem gravemente, por esse mundo além ou aquém. Contemplado com persistência e devoção, aquele Menino reflete-se em tantos outros, nascidos ou por nascer, cujas famílias também não encontram lugar apropriado e capaz. Entrevemo-Lo já, no seu percurso depois, próximo dos pobres de todas as pobrezas, inteiramente solidário em palavras e obras.
Mas tudo começou daquele modo, num lugar recôndito e tão diverso de Roma com o seu imperador, ou mesmo de Jerusalém com o seu rei. Isto mesmo nos importa, para sabermos como fazer agora, diante da vida própria e alheia, como nos toca a todos e a tanta gente pesa.
Se quisermos realmente celebrar e viver este Natal de 2020, façamo-lo à única luz daquela noite em Belém de Judá. Aceitemos cada um como sinal de Deus a aparecer neste mundo, sobretudo nos mais carentes e frágeis. O presépio onde nasceu pode ser agora a cama dum hospital, ou o leito doméstico dum doente. A solidão que envolvia aquele reduzido grupo, pode ser hoje a que entristece tantas pessoas sós e à espera da visita que tarda ou da mensagem que não chega. Sejamos para os outros os presentes que o Menino não teve. Neles nos espera, no grande presépio do mundo.

A eterna lição do Natal de Cristo é o modo de Deus nos acontecer. Convertamo-nos de vez ao modo divino de ser e de fazer. Veio ao nosso encontro numa pequenez inaudita. Viveu poucos anos num espaço limitado. Aí mesmo lançou à terra a mais pequena das sementes, que foi sempre crescendo pelo mundo além. Dois milénios depois, estamos nós aqui, celebrando e confirmando a força invencível da fragilidade divina.
Nós aqui, neste templo vetusto. Outros mais longe, onde nem os templos se podem levantar, ou permanecer seguros. Mas o Natal sempre cresce, com a força que só Deus lhe garante.
Aprendemos assim o certíssimo modo de ir resolvendo as coisas, mesmo as mais difíceis. Chegando ao muito pelo pouco, ao grande pelo pequeno e à humanidade de todos pela atenção a cada um. Mais do que com grandiosos projetos e meios formidáveis, as grandes obras começam com grandes corações. Corações que se fortalecem na medida em que acolhem o Coração divino. Esse mesmo que pulsou naquela noite abençoada.
Dois mil anos de Evangelho, nas mais diversas latitudes e circunstâncias, por vezes bem difíceis como foram e como são, garantem-nos absolutamente que é assim. Alarga-se continuamente o portal do Presépio de Belém.

Há um ano, o Papa Francisco dirigiu-nos uma belíssima mensagem, para nos fixar o olhar no Presépio, sem nos distrairmos com motivos que nos alheiem dele e do seu verdadeiro significado. Este ano, noutro magnífico texto, apresenta-nos a figura tutelar de São José, que, adotando Jesus, nos adota também a nós. Assim escreve: «O objetivo desta carta apostólica é aumentar o amor por este grande Santo, para nos sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos as suas virtudes e o seu desvelo» (Carta apostólica Patris corde, conclusão).
São José acompanha-nos sempre, sobretudo com o seu exemplo, cumprindo uma missão que o ultrapassava mas não dispensava. Acompanhemos os outros, como São José cuidou do Menino que Deus lhe confiou.

– Com Jesus, Maria e José, houve e continuará a haver Natal neste mundo!

Sé de Lisboa, 24-25 de dezembro de 2020

D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top