Homilia do bispo emérito de Bragança-Miranda na Missa da Ceia do Senhor

D. António Montes Moreira

1. Onde os outros Evangelhos colocam a narrativa da instituição da Eucaristia – «Isto é o meu Corpo… Isto é o meu Sangue… Tomai e comei! Tomai e bebei!» – o evangelho de S. João, que acabámos de escutar, introduz a cena surpreendente de Jesus a lavar os pés aos seus discípulos. Surpreendente porque lavar os pés de hóspedes e viajantes era ocupação própria de escravos e servos. A reação espontânea de Pedro, ao recusar inicialmente esse gesto de Jesus, era bem compreensível.

Obviamente, nesta Eucaristia de Quinta-Feira Santa não podia faltar o relato da sua instituição por Cristo. A Liturgia colocou-o na segunda leitura com uma passagem da primeira carta de S. Paulo aos cristãos da comunidade grega de Corinto (1 Cor 11, 23-25). É o texto mais antigo da instituição da Eucaristia, anterior à redação final dos três primeiros Evangelhos. Foi escrito pelos anos 57/58, uns 25/28 anos depois da morte de Jesus. Na sua solene simplicidade, esta narração respira a frescura matinal da Igreja apostólica das origens.

2. A primeira leitura, tirada do livro do Êxodo, descreve o ritual da Páscoa judaica. Com o banquete pascal, o povo hebreu revivia todos os anos a libertação do Egito a caminho da Terra Prometida. Mediante esse rito pascal, que consistia na imolação de um cordeiro, o povo agradecia essa ação libertadora de Deus. «Esse dia», refere o texto, «será para vós uma data memorável que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor» (Ex 12,14).

O cordeiro da ceia pascal judaica é antecipação e figura anunciadora de Jesus Cristo. Cristo é o verdadeiro cordeiro pascal que pela sua imolação cruenta do Calvário reconciliou a humanidade com Deus Pai e realizou a nossa plena libertação colocando-nos na órbita de Deus.

É esse o sentido da afirmação do Evangelho de que Jesus nos «amou até ao fim». Expressão carregada de intencionalidade e de plenitude de sentido.

«Amar até ao fim» não é para entender apenas no plano cronológico de se ter manifestado até ao fim da vida de Jesus, mas de «amar até ao extremo», no sentido globalizante de Cristo ter oferecido toda a sua vida por nós até ao sacrifício supremo da morte. Cristo assumiu a plenitude da nossa existência, incluindo a morte, para lhe dar  sentido novo, o sentido da ressurreição.

«Amar até ao fim/até ao extremo» significa também que Jesus, ao instituir a Eucaristia, quis continuar presente no meio de nós sobre o altar e no sacrário. A presença eucarística é uma dádiva plena, levada até ao fim.

A Eucaristia é «mistério da fé», como o celebrante proclama depois da consagração. À grandeza insondável do mistério da presença sacramental de Jesus na Eucaristia devemos corresponder com uma atitude de contemplação, agradecimento e adoração.

 

3. Fomentar a contemplação eucarística não significa, porém, promover um intimismo religioso, desligado do concreto da vida. É esta a lição dada por Jesus no lava-pés.

A Eucaristia é sacramento eminentemente comunitário e social. O mandamento novo da caridade fraterna – «assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13,15) – promulgado por  Jesus na Última Ceia ao mesmo tempo em que instituiu a Eucaristia, está estruturalmente vinculado à Eucaristia.

O relato da instituição da Eucaristia não aparece no evangelho de S. João. Mas o evangelista não o substituiu pela narrativa do lava-pés. S. João apresenta o lava-pés como exemplificação do significado comunitário da Eucaristia.

Dito doutra maneira. A Eucaristia manifesta a linha vertical do amor de Deus para connosco («amou-nos até ao fim, ao extremo») e constrói a dimensão horizontal da caridade fraterna.

 

4. S. Paulo sublinha também a dimensão comunitária da Eucaristia.

Por um lado, acentua que a Eucaristia é comunhão com Cristo e com os irmãos. Porque nos alimentamos do mesmo Corpo de Cristo formamos todos um só Corpo, a Igreja. A Eucaristia constrói a Igreja.

Por outro lado, no mesmo capítulo da primeira carta aos Coríntios em que narra a instituição da Eucaristia (a passagem lida na primeira leitura) o Apóstolo refere e censura as divisões existentes na comunidade de Corinto. Uma Eucaristia celebrada com divisões é uma contradição.

Vivamos lá fora no dia-a-dia a união que celebramos aqui dentro da igreja. Promovendo o bom entendimento e a fraternidade no plano pessoal, familiar e social e  transformando situações e estruturas sociais injustas que ofendem a dignidade humana, criada à imagem e semelhança de Deus.

É este o desafio permanente para a nossa vida de cristãos eucarísticos coerentes: levar a celebração da Eucaristia para a vida servindo os irmãos à imitação de Jesus que, no dia da instituição da Eucaristia, lavou os pés aos seus discípulos.

D. António Montes Moreira, bispo emérito de Bragança-Miranda

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top