Homilia do Bispo do Porto no Dia Mundial da Paz

(…) tantos centros ATL, postos em causa por uma legislação que não teve suficientemente em conta os serviços prestados e os encargos assumidos “Naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura” (Lc 2, 16). Aqui estamos, amados irmãos e irmãs, a abrir o ano com Nossa Senhora, porque Mãe de Deus e nossa Mãe. Com ela encontramos Jesus, ambos guardados por José. Assim foi com os pastores, assim mesmo é connosco. E a meditação anual e assídua deste mistério traz sucessivos jorros de luz à nossa vida e à vida do mundo, para que a paz anunciada em Belém se realize em tudo e em todos Colhamos alguma dessa luz. Antes de mais ali mesmo, onde e como os pastores a encontraram. O Evangelho mostra-nos a família que Deus quis ter na terra: logo, o caminho para nos encontrarmos com Deus, primeira e última solidez das coisas. Assim é, de facto: a primeira manifestação de humanidade não é o indivíduo, mas a relação familiar. Não é o indivíduo, nem poderia ser, pois ninguém nasce de si mesmo, mas do amor que o gera. Da pré-história à actualidade, a humanidade evoluiu decerto, mas sem nunca iludir esta base essencial, ainda que com menores ou maiores alterações no seu âmbito, dos grandes grupos patriarcais ou matriarcais aos pequenos núcleos de hoje em dia. Coube ao Cristianismo desenvolver muitíssimo esta consideração relacional do ser humano, como tantos autores o reconhecem, pela meditação do que era o próprio Cristo, que inteiramente se definia na relação com o Pai, em Espírito unitivo. Daí à consideração unitrinitária de Deus o caminho foi breve, ainda que as formulações se fossem apurando. Daí à compreensão do que somos nós, criados “à imagem e semelhança de Deus”, como humanidade à maneira da Trindade e, por isso mesmo, só realizada em comunhão. Fomos percebendo e ajudando a perceber, a crentes e não-crentes, o porquê desta verdadeira “atracção universal” que nos leva, apesar de tudo, a não desistir dum caminho conjunto e solidário, da família natural à grande família humana. Não somos meramente indivíduos, abstracção numérica e mental; somos pessoas, isto é, seres em relação, e só nesta absolutamente realizados, em todos os patamares da vida, da que recebemos pelos pais à que construímos com os outros e à que plenamente viveremos em Deus. Em Deus, quando a obra e a graça do Espírito de Cristo nos fizerem dizer com inteira propriedade “Abba, Pai!” (cf. Rm 8, 15). Um caminho de familiaridade crescente é então o da vida, da família à humanidade, do tempo à eternidade, como o viveu Santa Maria, Mãe de Deus porque Mãe do Filho de Deus encarnado, e nossa Mãe, porque em nós essa encarnação continua, na humanidade por Ele assumida e salva. Não admirará, portanto, que o Santo Padre Bento XVI nos tenha dirigido uma Mensagem para este Dia Mundial da Paz, ligando família natural e família humana, na mesma senda de conciliação e reconciliação activa das coisas, aos seus vários níveis. Não admira, antes confirma com particular premência e exactidão o que a observação honesta verifica. Logo neste passo, por exemplo: “A família é fundamento da sociedade inclusivamente porque permite fazer decisivas experiências de paz. Devido a isso, a comunidade humana não pode prescindir do serviço que a família realiza” (Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, nº 3). Sabemo-lo bem: por relacionamento espontâneo, natural proximidade e decorrente entreajuda, a família é um tirocínio normal de sociabilidade. Valha aqui e positivamente a sabedoria popular, quando assevera: “casa de pais, escola de filhos”. Assim é de direito, assim há-de ser de facto. O que nos compromete na salvaguarda e promoção da família. O Papa insiste, responsabilizando-nos a todos, na sociedade que constituímos: “Este é um ponto que merece especial reflexão: tudo o que contribui para debilitar a família fundada sobre o matrimónio de um homem e uma mulher, aquilo que directa ou indirectamente refreia a sua abertura ao acolhimento responsável de uma nova vida, o que dificulta o seu direito de ser a primeira responsável pela educação dos filhos, constitui um impedimento objectivo no caminho da paz. A família tem necessidade da casa, do emprego ou do justo reconhecimento da actividade doméstica dos pais, da escola para os filhos, de assistência sanitária básica para todos. Quando a sociedade e a política não se empenham a ajudar a família nestes campos, privam-se de um recurso essencial a serviço da paz” (Mensagem, nº 5). O elenco é essencial e certeiro. O apelo também, às nossas consciências de cidadãos crentes. Como cidadãos perguntemo-nos se, na nossa cidade e no nosso Estado, especialmente quando o abandono de tantos e a delinquência de alguns redobram problemas e levantam novos medos, estamos mesmo decididos a tirar as consequências práticas do reconhecimento do papel da família na consolidação da paz. Perguntemo-nos, para começar, se os jovens têm condições reais para constituir família e acolher os filhos, relembrando a sabedoria popular, quando nos diz que “quem casa quer casa”. Perguntemo-nos se têm depois a possibilidade de exercer o seu imprescindível direito de educar os filhos, com os apoios institucionais que lhe são devidos, mas exactamente como apoios e não restrições arbitrárias do direito e dever dos pais em transmitir aos filhos os próprios sentimentos, valores e convicções. Façamo-nos então esta perguntas, sem esquecer as demais alíneas da Mensagem papal. E, como crentes, demos graças a Deus por tanta reposta que as instituições eclesiais dão nestes campos sócio-caritativos. Resposta que mereceria até uma contemplação oficial que por vezes não encontra: lembre-se, por exemplo, o que sucedeu em relação a tantos centros de actividades de tempos livres (ATL), postos em causa por uma legislação que não teve suficientemente em conta os serviços prestados e os encargos assumidos. Mas prossigamos… Prossigamos, também como Igreja, numa presença criativa e profética junto das famílias, com as suas necessidades e urgências. O Papa João Paulo II chamou à paróquia “família de famílias”. Levemos a sério o apelativo nas comunidades cristãs, tendo cada família sempre em conta na acção pastoral: quer preparando o matrimónio, quer apoiando-o depois; quer ajudando-a na educação dos filhos, quer valorizando o lugar dos idosos; e sendo em tudo coerentes com a defesa feita da sustentação da vida, da concepção à morte natural, com iniciativas audazes e práticas nesse sentido. Não nos faltam urgências pastorais, neste primeiríssimo ponto, à luz reforçada da Mensagem pontifícia! Como não faltará no ponto subsequente dela, quando o Papa alarga o horizonte, da família ao planeta inteiro. Quando diz nomeadamente: “A família precisa duma casa, dum ambiente à sua medida onde tecer as próprias relações. No caso da família humana, esta casa é a terra, o ambiente que Deus criador nos deu para que o habitássemos com criatividade e responsabilidade” (Mensagem, nº 7). Donde concluiremos que, quem tiver sido iniciado no seio da própria família em sentimentos de mútua consideração e cuidado pelas coisas, mais facilmente se responsabilizará pelo mundo, como casa comum de todos. O Papa não deixa de indicar critérios prudenciais e medidas práticas, para a ecologia, a economia ou o direito. Mas adverte também: “Podem-se aumentar, se for necessário, os lugares institucionais a nível internacional, para se enfrentar conjuntamente o governo desta nossa ‘casa’; mas, o que mais conta é fazer maturar nas consciências a convicção da necessidade de colaborar responsavelmente” (Mensagem, nº 8). É especialmente neste sentido que sobressai dimensão “ecológica” do Cristianismo, redundando em benefício das criaturas tudo o que se passar com os autênticos crentes. Bem nos lembra S. Paulo que “a criação aguarda ansiosa a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 19). E com os mesmos sentimentos cantava S. Francisco de Assis: “Louvado seja Deus na mãe querida, a natureza, que fez bela e forte!”. Pois bem: importa reforçar nas nossas catequeses a consideração cristã da natureza e do mundo, confiados ao homem e à sua responsabilidade e criatividade, cumprindo pela caridade universal de Cristo a ordem genesíaca de cuidar da terra. Movimentos da Igreja em Portugal, como o Escutismo Católico, muito têm feito nesse sentido. Mas é obrigação de nós todos, como crentes e cidadãos responsáveis pelo mundo. Das famílias às empresas, das nações à cena internacional, o empenho é imprescindível e urgente neste capítulo também, como reconhece o Papa: “Os problemas que se desenham no horizonte são complexos e o tempo escasseia. Para fazer frente de maneira eficaz à situação, é preciso agir de comum acordo” (Mensagem, nº 8). E é sobre este “comum acordo” que faço uma última referência à Mensagem de Bento XVI, num ponto que lhe é particularmente caro, como já o fora ao seu predecessor: a necessidade de convirmos, teórica e praticamente, numa base comum de valores, onde nos possamos reconhecer e consolidar como humanidade partilhada. Para tal, o Papa lembra que neste mesmo ano de 2008 se comemoram os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento da Organização das Nações Unidas, em que “a família humana reagia aos horrores da II Guerra Mundial, reconhecendo a sua própria unidade assente na igual unidade de todos os homens e pondo, no centro da convivência humana, o respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos e dos povos” (Mensagem, nº 15). Também aqui há algo mais a fazer, na pedagogia eclesial e cívica, evidenciando valores básicos de humanidade e responsabilidade, aproximando pessoas e crenças. E, entre esses valores básicos e reconhecidos, não falta certamente o da família, salvaguardada pela mesma Declaração Universal dos Direitos Humanos nos seguintes termos: “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito a ser protegida pela sociedade e pelo Estado” (Art. 16/3. Mensagem, nº 4). Concluamos então, ligando solenidade, mensagem e vida, num único e alargado movimento de verdadeira comunhão. O que os pastores viram em Belém, vejamo-lo nós com eles: Jesus, Maria e José, a família que Deus teve no mundo; e da família para o mundo. De Deus para Deus, se quisermos o arco completo e, finalmente, a paz. Com toda a confiança que nos advém de Santa Maria Mãe de Deus, tão singelamente expressa pelo Santo Padre: “Os cristãos sabem que podem confiar-se à intercessão d’Aquela que, sendo Mãe do Filho de Deus encarnado para a salvação da humanidade inteira, é Mãe Comum” (Mensagem, nº 15). Como nos corações das mães, está sobremaneira nela o futuro do mundo! + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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