Homilia do Bispo do Porto no 80.º aniversário do Opus Dei

«Quando os anjos nos inspiram…» Diz-nos o Evangelho que os nossos Anjos vêem continuamente o rosto do Pai celeste. Diz-nos a história cristã, que, a partir daí, nos ensinam o que havemos de fazer para cumprir a vontade de Deus. Assim aconteceu com S. José Maria, assim o constatamos e agradecemos, oitenta anos depois. Recordemos então: José Maria Escrivá de Balaguer e Albás (1910-1975), nasceu em Barbastro (Espanha) a 9 de Janeiro de 1902. Ali se tinham casado os seus pais, José e Dolores, de famílias antigas de Aragão e Catalunha. Ali nasceu a sua irmã mais velha, Cármen; e outras três mais novas, que morreram crianças. Ali fez os seus primeiros estudos, no colégio dos Escolápios. O ambiente doméstico deu-lhe virtudes básicas de religião, verdade, espírito de família e honradez. Foi também pela sua honradez que o pai ficou quase reduzido à pobreza, depois de ter perdido o negócio de tecidos e ter querido ressarcir todos os lesados com a falência. José Escrivá mudou-se para Logroño e para lá levou a família, passando de patrão a empregado, num negócio similar. Tudo isto marcou necessariamente o pequeno José Maria; tanto como a cura “miraculosa” duma doença grave que o vitimara aos dois anos de idade, graças a Nossa Senhora de Torreciudad, a quem os pais recorreram. De 1915 a 1918 continuou os estudos em Logroño. Pelo Natal de 1917, as marcas na neve dos pés descalços de um carmelita impressionaram-no vivamente, no sentido da entrega a Deus. O projecto que tinha de estudar Arquitectura foi-se apagando diante da vocação sacerdotal, não religiosa mas secular. Disse-o ao pai, que lhe pediu para tirar também um curso civil, Direito. De 1918 a 1920 estudou como externo no Seminário de Logroño. Como “recompensa” os pais teriam outro filho, Santiago, em 1919… Depois da Filosofia e do primeiro ano de Teologia, transitou para o Seminário de S. Francisco de Paula e a Universidade Pontifícia de Saragoça. Em 1922, ainda estudante, foi nomeado inspector (prefeito) do Seminário. Em 1923 começou também a estudar Direito na Universidade de Saragoça, como lho pedira o pai, que morreu subitamente no ano seguinte, deixando a família a cargo de José Maria. A mãe, a irmã e o irmãozito vêm para Saragoça, de nada lhes valendo um tio que lá tinha, irmão de sua mãe e arcediago… É apreciado por colegas e professores na Universidade estatal. Socialmente, porém, os tempos vão agitados: o cardeal Soldevila, arcebispo de Saragoça, fora assassinado por um anarquista em Junho de 1923. Escrivá sentira-se chamado ao sacerdócio, mas também que o Senhor esperava dele algo de específico, não divisado ainda. E pedia insistentemente: “Senhor, que eu veja!”. Foi ordenado sacerdote a 28 de Março de 1925, na igreja do Seminário de S. Carlos, em Saragoça, pelo respectivo reitor, D. Miguel de los Santos, bispo titular de Tagora, porque o novo arcebispo ainda não tomara posse. A 30 celebrou “Missa Nova” diante da Virgem do Pilar. No dia seguinte foi para Perdiguera, pequena paróquia rural em que passou os dois primeiros meses de ministério, dedicando-se intensamente ao culto, à instrução religiosa, à visita de sãos ou doentes, sem se ressentir de tal nomeação, algo insólita e abrupta… Seguiram-se dois anos em Saragoça, obtendo também a licenciatura em Direito, em Janeiro de 1927. A 17 de Março, o arcebispo Domenach autorizou-lhe a ida para Madrid, onde prosseguiu os estudos jurídicos até ao doutoramento. Em Junho de 1927 ficou capelão do Patronato dos Enfermos (das Damas Apostólicas do Sagrado Coração). Em Novembro, alugou um pequeno alojamento para onde veio a família. Dava aulas de Direito na Academia Cicuéndez: “O Patronato, a família na rua Fernando o Católico, os pobres e os enfermos, os estudantes da Academia Cicuéndez, os seus amigos sacerdotes, os estudos de doutoramento, a liturgia e a oração… Era este o seu labor quotidiano e o ambiente – o contexto – do dia 2 de Outubro de 1928, em que o Senhor, finalmente, lhe deu a conhecer a sua Vontade: o Opus Dei” (Pedro Rodríguez). Estava a fazer Exercícios Espirituais numa casa de Vicentinos em Madrid, quando “viu” finalmente aquilo para que Deus o chamava há tanto tempo. Di-lo-á assim, seis anos depois: “A Obra de Deus não foi imaginada por um homem. […] Há muitos anos que o Senhor a inspirava a um instrumento inapto e surdo, que a viu pela primeira vez no dia dos Santos Anjos Custódios, dois de Outubro de 1928”. Segundo Pedro Rodríguez, “pode dizer-se que S. José Maria ‘descobre’ o chamamento universal de Deus à santidade, realizando-se não só em situações extraordinárias, mas no meio do trabalho humano e das circunstâncias mais comuns da existência, chamamento que parecia esquecido na praxis dos cristãos, onde dominava, em grande parte, a separação entre a fé e a vida do dia a dia”. Percebe ainda, segundo outros autores (Fuenmayor, Gómez-Iglesias e Illanes), que “Deus quer que consagre a totalidade das suas energias a promover […] uma Obra que se identifique com o fenómeno pastoral que promove, formada por cristãos correntes que, ao descobrirem o que a vocação cristã pressupõe, se comprometem com tal chamamento e se esforçam depois por comunicar essa descoberta aos outros, estendendo assim pelo mundo a consciência de que a fé pode e deve vivificar por dentro a existência humana, com todas as realidades que a integram: em primeiro lugar, as exigências do próprio trabalho profissional e, em geral, a vida familiar e social, o empenho científico e cultural, a convivência cívica, as relações profissionais…” (Cf. tb. Hugo de Azevedo – Uma Luz no Mundo, p. 57). A mesma “luz fundacional” fê-lo ver, a 14 de Fevereiro de 1930, que também as mulheres deviam integrar o Opus Dei. Bem como a integração ou o acompanhamento de sacerdotes. 1931 foi um ano de muitas e graves mudanças em Espanha, em termos políticos e religiosos. Em Maio, deixou de morar no patronato dos Enfermos e mudou-se com a família para a rua Viriato. Mas foram esses meses agitadíssimos, com os conventos incendiados e as constantes provocações aos clérigos, que mais definiram a vocação e a obra de Escrivá. Em Setembro de 1931 foi nomeado capelão do Patronato de Santa Isabel, continuando a acompanhar espiritualmente muitos e a visitar doentes. Mantinha uma vida interior e ascética intensa e ia anotando as suas intuições e reflexões. Em Dezembro de 1932, divulgou o primeiro fascículo das suas Considerações Espirituais. É também dessa altura o seu Santo Rosário. Envolvia outros na acção apostólica e caritativa e, em Janeiro de 1933, começou a formação espiritual de universitários. Em Dezembro abriu a Academia DYA (Derecho y Arquitectura, ou antes Dios y Audácia) primeira aplicação do Opus Dei. No ano seguinte a Academia mudou para a rua Ferraz, também como residência de estudantes universitários. Nos primeiros tempos da Guerra Civil – que durará de 1936 a 1939 – conseguiu permanecer em Madrid, mudando de refúgio em refúgio, inclusive num estabelecimento psiquiátrico. Mas em Outubro de 1937 abandonou a capital e, de 19 de Novembro a 2 de Dezembro, atravessou os Pirinéus com alguns companheiros, numa jornada dificílima, quer pela invernia quer pela vigilância das autoridades, que tinham de iludir. Era necessário continuar a Obra e Escrivá reentrou logo em Espanha: a 12 de Dezembro chegou a San Sebastián; ficou alguns dias em Pamplona, bem recebido pelo respectivo bispo. Escolheu Burgos para centro da sua actividade apostólica. Aí terminou a redacção do Caminho. Regressou a Madrid a 28 de Março de 1939. Em Dezembro, na Universidade da capital, obteve o doutoramento em Direito, com uma tese sobre as Huelgas de Burgos. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) impediu a expansão da iniciativa para além de Espanha. Mas cresceu aí mesmo e estamos já na fase da expansão institucional e literária da obra de Escrivá: Opus Dei e Caminho, são cada vez mais difundidos. O facto de pregar muitos retiros a sacerdotes e religiosos fez de Escrivá alguém conhecido e seguido na Igreja espanhola, ainda que contestado por outros. A 19 de Março de 1941, o bispo de Madrid aprovou – e protegeu – o Opus Dei como Pia União. A 22 de Abril faleceu a mãe de Escrivá. Finda a guerra, a expansão e consolidação do Opus Dei far-se-á a partir de Roma, onde Escrivá chegou a 23 de Junho de 1946, ano em que a Obra se estabeleceu também em Portugal (onde gostava especialmente de se deter em Fátima e no convento de Santa Clara de Coimbra, junto da sua “conterrânea” Santa Isabel), Itália e Grã-Bretanha; no ano seguinte foi a vez da França e da Irlanda; em 1949, começou no México e Estados Unidos… A 13 de Agosto de 1946, um documento da Santa Sé louvou os fins do Opus Dei; a 16 de Junho de 1950 concedeu-lhe a aprovação definitiva. Em Outubro de 1952 iniciou-se o Estudo Geral de Navarra, em Pamplona, depois Universidade de Navarra. Em 1961, João XXIII nomeou Escrivá consultor da Comissão Pontifícia para a interpretação autêntica do Código de Direito Canónico. Em Outubro de 1962 começou o Concílio Ecuménico, que Escrivá seguiu de perto: o decreto Presbyterorum ordinis, nº 10, previu “prelaturas pessoais”, quadro institucional que se aplicou depois ao Opus Dei por decisão de João Paulo II, a 28 de Novembro de 1982. Como o fundador intuíra e pretendera – e sem negar o enquadramento básico dos fiéis nas Igrejas particulares de residência – facultava-se a conjugação jurídica, apostólica e espiritual de fiéis, clérigos e leigos, para fins de formação e actuação específicas (Cf. Código de Direito Canónico, 1983, Cânones 294-297). Mas tanto ou mais o alegraria a insistência conciliar na vocação universal à santidade, que fora a inspiração essencial da sua vida e obra: “Todos os fiéis se santificarão cada dia mais nas condições, tarefas e circunstâncias da própria vida e através de todas elas, se receberem tudo com fé da mão do Pai celeste e cooperarem com a divina vontade, manifestando a todos, na própria actividade temporal, a caridade com que Deus amou o mundo” (Lumen gentium, nº 41). Depois de viajar, intensa e apostolicamente, pela América Latina em 1974 e 1975, faleceu subitamente em Roma, a 26 de Junho de 1975, olhando um quadro de Nossa Senhora de Guadalupe. João Paulo II beatificou-o em 1992 e canonizou-o a 6 de Outubro de 2002. No dia seguinte adiantaria: “São José Maria Escrivá foi escolhido pelo Senhor para anunciar a vocação universal à santidade e para indicar que a vida de todos os dias, as actividades comuns, são um caminho de santificação. Poder-se-ia dizer que ele foi o santo da normalidade. Com efeito, ele estava convencido de que, para quem vive segundo uma perspectiva de fé, tudo é ocasião de encontro com Deus, tudo se torna estímulo à oração” (L’Osservatore Romano, ed. port., 12 de Outubro de 2002, p. 5). Agradeçamos a Deus a vida e a obra. E, com S. José Maria, acolhamos a companhia e a inspiração dos Anjos! Igreja da Trindade, 2 de Outubro de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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