Homilia do bispo do Porto na solenidade de Santa Maria Mãe de Deus – Dia Mundial da Paz

Celebrando com toda a Igreja e em intenção de todo o mundo…

1.“Naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura… Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto…”.

São frases curtas e incisivas, estas de São Lucas, no Evangelho há pouco escutado, quando celebramos com toda a Igreja e em intenção de todo o mundo a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus – Dia Mundial da Paz, abrindo assim o ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2012, bem entrados já no terceiro milénio cristão.

Os pastores encontraram Maria, José e o Menino, ou seja, depararam com uma família, a que justamente chamamos “sagrada”, pois foi nela que Deus se apresentou ao mundo.

Das muitas verdades que concluiríamos daqui, fixo-me agora em algumas. E a primeira é a da inaudita chegada de Deus à terra, a sua visualização no mundo: – Quem imaginaria que assim fosse? Os deuses antigos viviam em Olimpos, não eram meninos em manjedouras. E, se algum aparecesse, seria certamente só por si, manifestando individualmente o poder que a imaginação dos homens lhe emprestasse… Em Belém fora tudo inesperado e diferente: a mãe que o tivera, o pai que o adotara e o Menino por fim. Definitivamente, pois nunca será doutro modo.

Entendamo-nos neste ponto. Nem precisamos de ser imediatamente religiosos, para concluir que nada de essencial aparece nem essencialmente se resolve sem contexto comunitário – esse mesmo de que a família é a primeira expressão. E, se tanto individualismo que por aí alastrou e sobeja foi inegavelmente uma das causas da presente crise, também se evidencia que as famílias – ou o que permanece delas – ainda são porto de abrigo para muitos dos que mais a sofrem, por súbita falta de meios materiais ou de apoio afetivo.

Mas, se a isto somarmos a convicção cristã de que Deus nos visitou naquele Menino e daquela maneira, mais razões teremos para respeitar e promover a família como base indispensável da humanidade a reconstruir – e precisamente a partir dela. E falo, obviamente, da família que mantenha o específico do que sempre manteve, apesar das diversidades étnicas e culturais que também conheceu: a complementaridade feminino-masculino e a abertura à geração.

 

2. É certo que a família é o primeiro patamar da sociabilidade humana, a que se sucedem outros. O longo e árduo desenvolvimento das sociedades demonstra bem que estas se conseguiram pela extensão das redes interfamiliares, quer partilhando antepassados comuns quer incluindo quem vinha de fora. E o próprio Menino que hoje contemplamos na família de Belém surpreenderá doze anos depois Maria e José, quando o reencontrarem no templo de Jerusalém Aí indicou uma paternidade mais alta e mais ampla, por si alargada a nós todos, na família dos filhos de Deus.   

É certo. Mas nada disto sucederá sem a primeira e indispensável aprendizagem social e afetiva que na família normalmente acontece. E também isto se difundiu a partir do presépio de Belém, como depois da casa de Nazaré. Não é por acaso que os presépios que montamos nesta quadra mantêm tanto poder evocativo e pacificador.

Da família que teve na terra, Jesus extraiu toda a linguagem e sentimento com que depois nos traduziu tão maravilhosamente a misericórdia que o seu Pai celeste nos oferece a todos. Das famílias que tivermos e mantivermos extrairemos nós o ideal e os gestos que a sociedade finalmente há de ter.

Como os pastores, anunciaremos o que tivermos visto e ouvido. Por minha parte, dou infindas graças a Deus pelo grande número de casais cujas Bodas de Prata e Ouro de Matrimónio tenho o gosto de festejar na celebração anual que a Diocese do Porto muito justamente lhes dedica. Cada um deles demonstra que quanto irradiou da Sagrada Família continua a brilhar no mundo, com vantagem de todos. E de bom grado me junto àqueles pastores que o anunciaram na altura. – Há felizmente muito mais e melhor, no que à família e à sua estabilidade diz respeito, do que a monotonia dos seus tão publicitados desaires dá a entender!

E é exatamente porque o sabemos e porque reconhecemos na família o maior e mas pedagógico sustentáculo da sociedade, que todos – por motivos religiosos ou humanitários – devemos dar-lhe o apoio social e a primazia legal que indubitavelmente merece. Educando familiarmente os mais novos, para que possam criar por sua vez boas famílias; dando às que se constituam as condições materiais e institucionais que as tornem mais sustentáveis e até apetecíveis; planificando a sociedade e o trabalho em função das famílias e da respetiva unidade, e não de modo meramente individual e disperso… Tanto a fazer, para contrariar, pela positiva, a pesada estatística de divórcios, uniões não institucionais, poucos nascimentos e pessoas sós.

 

3. Porque é também de paz que hoje falamos. Fala muito especialmente o Santo Padre Bento XVI na Mensagem para o 45º Dia Mundial da Paz, que aqui celebramos, como pelo mundo além. Escolheu por título e tema “Educar os jovens para a justiça e paz” e detém-se particularmente na relação da família com tudo o que se há de fazer nesse sentido.

Deixai-me insistir em que todos leiam a Mensagem de Bento XVI, cristãos e não cristãos que sejam, pois a todos interessa tal base comum. Mas, na sequência do que vou partilhando convosco, não posso deixar de citar, ao menos, o seguinte trecho papal, interrogando primeiro e considerando depois, com grande oportunidade e realismo: “- E quais são os lugares onde amadurece uma verdadeira educação para a paz e a justiça? Antes de mais a família, já que os pais são os primeiros educadores. A família é a célula originária da sociedade. […] Vivemos num mundo em que a família e até a própria vida se veem constantemente ameaçadas e, não raro, destroçadas. Condições de trabalho frequentemente pouco compatíveis com as responsabilidades familiares, preocupações com o futuro, ritmos frenéticos de vida, emigração à procura dum adequado sustentamento se não mesmo da pura sobrevivência, acabam por tornar difícil a possibilidade de assegurar aos filhos um dos bens mas preciosos: a presença dos pais; uma presença, que permita compartilhar de forma cada vez mais profunda o caminho para se poder transmitir a experiência e as certezas adquiridas com os anos – o que só se torna viável com o tempo passado juntos. – Queria dizer aos pais para não desanimarem!” (Mensagem, nº 2).  

Também nós o queremos dizer certamente, amados irmãos e irmãs. Mas só o faremos de facto se nos empenharmos ao máximo para que nas nossas próprias famílias e naquelas que conhecemos, bem assim como nas nossas comunidades cristãs e vizinhanças, tudo fizermos para que cada um dos itens requeridos pelo Papa – condições de trabalho e convivência familiar, transmissão de convicções… – realmente se efetivem.

 

4. Estamos em tempo de crise, mas sobretudo de sair dela. Não deixemos então que os mesmos fatores individualistas ou economicistas que negativamente a provocaram prevaleçam agora, ainda que doutra maneira, sobre os fatores familiares e personalistas que foram por demais esquecidos.

Há dois mil anos, Deus visitou-nos numa família, que Ele próprio formou para si e para nós: para que nascesse no mundo e o mundo renascesse n’Ele. Século após século, os seguidores de Cristo tentaram – com maior ou menor êxito e congruência, é certo, mas com inegável insistência – reforçar a família humana com qualidades que ainda mais a garantissem. Assim se dignificou a mulher, na complementaridade com o homem; assim se dignificaram mutuamente pais e filhos e se acompanharam os parentes idosos ou sós; assim se santificou para os crentes a própria instituição familiar. Voltar atrás em qualquer destes pontos seria uma tremenda tragédia civilizacional, com graves riscos para a solidariedade e a paz, que têm geralmente na família a sua primeira e indispensável pedagogia.

Tomemos então muito a sério tudo quanto o Santo Padre nos escreve na Mensagem para este Dia Mundial da Paz, não deixando de a reler pessoalmente, em família e nas nossas comunidades eclesiais. Na Diocese do Porto, que tem como programa atual a Família e a Juventude, tomemo-la como texto base de reflexão e ação. E que Santa Maria Mãe de Deus, com o indispensável apoio de São José, nos ensinem a cuidar dum Cristo que de algum modo se reproduz em cada geração cristã, para a salvação do mundo.

– Santo e feliz ano novo, pleno de novidade cristã!

 Sé do Porto, 1 de janeiro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2012

D. Manuel Clemente

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top