Homilia do bispo do Porto na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

Um Reino certo em tempos incertos

 

1. Celebramos a solenidade de Nosso Jesus Cristo Rei do Universo. Não digo “mais uma”, nem “mais uma vez”, mas a solenidade propriamente “dita e feita”, sempre a mesma e nós mais incluídos no que celebramos. Não poderia ser doutra forma, pois só assim é celebração autêntica, e não mera evocação de acontecimento alheio. É-nos oferecida, a celebração, para que, mais e mais, se realize em nós e, por nós, se alargue ao mundo.

Caríssimos amigos, especialmente vós, laicado militante da diocese do Porto, seminaristas que vos aproximais do sacerdócio ministerial e irmãos que vos dispondes ao diaconado permanente: é com grande gosto e ação de graças que vos acolho na igreja catedral, em mais um momento cheio de significado e verdade das vossas vidas ao serviço de Cristo Rei. De Cristo e da sua realeza no mundo, com as qualificações primeiras que tal realeza tem: caridade, serviço e paz!

Deixai-me partilhar convosco breves sugestões que a Palavra ouvida me induziu. Nomeadamente três, que aliás distinguem o reinado de Cristo de qualquer outro que fosse: 1ª) É iniciativa exclusivamente divina; 2ª) É o sentido dinâmico de tudo quanto positivamente sucedeu, sucede ou sucederá; 3ª) Decide-se na vida de cada um de nós, em termos de caridade atual e atuante, nada mais e nada menos.

 

2. É iniciativa exclusivamente divina, que podemos ilustrar com o magnífico trecho de Ezequiel que escutámos a abrir as Leituras de hoje: “Eis o que diz o Senhor: ‘Eu próprio irei em busca das minhas ovelhas e hei de encontrá-las’”. No tempo do profeta, tais palavras referiam-se à situação concreta dum povo humilhado e disperso. Mas não perdem realismo hoje em dia, neste hoje que vivemos e convivemos como povo, de presente angustiado e futuro incerto para tantos e excessivamente tantos.

Também aqui se juntam, como então, fatores nossos e alheios. Mas também aqui se há de firmar a esperança no Senhor da história, de todas as histórias individuais, familiares, empresariais ou sociais e políticas em que o deixarmos efetivamente reinar: não nos tirará responsabilidade nem espaço, mas tudo conduzirá para o fim coincidente com o princípio, ou seja, com os princípios básicos de desenvolvimento pessoal e comunitário, que têm em Deus a fonte mais garantida da dignidade geral e da dignificação prática de todos e de cada um.

Foi então um profeta a dizê-lo, como agora hão de ser outros profetas, rumo àquele futuro que, com Deus, sempre se reabre. O facto de estarmos aqui, nesta manhã abençoada de Cristo Rei, com renovada vontade apostólica e disponibilidade certa para o serviço eclesial, só pode significar que cada um de nós quer estar absolutamente do lado de um Deus Pastor que sempre busca as suas ovelhas, para que nenhuma se perca no desamparo material, social, psíquico ou espiritual, sobretudo quando se reduzem as seguranças habituais ou as expectativas.

Só aí queremos estar, na caridade de Deus pelo seu povo, e só assim se “justifica” a celebração que fazemos. Assim como deveríamos saber de cor e manter no coração o salmo a seguir cantado, pleno da grata verdade de Deus Pastor das almas e do mundo: “O Senhor é meu pastor: nada me faltará”. Mártires houve que morreram a cantá-lo, experimentando, ainda aí, uma presença que a própria morte não extinguia. Outros há que o rezam na enfermidade; ou quando lhes fecham demasiadas portas. Quem o souber, alcança a plena liberdade.

 

3. Outra sugestão nos é dada pelo trecho de São Paulo aos coríntios, que ouvimos também. Impressiona realmente a visão larguíssima que o Apóstolo já tem da marcha inteira dos acontecimentos pessoais e universais, naquela luz de Cristo que tão definitivamente o deslumbrara.

– E que importante é isto, irmãos caríssimos, quando catadupas de informações e contrainformações – quando não meras distrações – nos podem deixar também mentalmente dispersos, sem saber como ajuizar das coisas nem decidir os rumos! – Que importante é ganharmos, com Paulo e à luz de Cristo, o significado mais profundo de quanto se passou, passa ou passará, para não sermos nós próprios ultrapassados ou submersos por torrentes sem sentido nem controlo!

Relembremos então: “… Depois será o fim, quando Cristo entregar o reino a Deus seu Pai… Quando todas as coisas Lhe forem submetidas, então também o próprio Filho Se há de submeter Àquele que Lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos”.

– Estais a “ver”, amados irmãos?! – A “ver” na mesma luz em que São Paulo via e escrevia aos coríntios, como a nós agora?! Já antes lhes tinha dito que “do mesmo modo que em Adão – isto é, numa humanidade fechada e limitada em si própria – todos morreram, assim também em Cristo serão todos restituídos à vida”. O que tudo resumiremos assim e nas atuais circunstâncias: como sociedade perplexa e dispersa, à procura de viabilidade e acerto, visando um futuro imediato ou mais à frente; também como Igreja portucalense, que prossegue em missão e procura métodos e expressões para a nova evangelização que tanto urge, das famílias, dos jovens e de tudo o mais, em fermentação constante dum mundo mais justo e mais fraterno: reconheçamos e confessemos que na vida e nas palavras de Cristo temos estrada certa, ainda que exigente e estreita, para realizarmos as vidas em perfeita coincidência do fim que almejam com o princípio que as garante, ou seja, com o Pai que Jesus reparte com nós todos. Aí temos a vitória sobre a morte – todo o tipo de morte e sinais dela, como são os egoísmos individuais ou de grupo -, pois encontramos a inesgotável fonte da vida, como brota do peito de Cristo Rei, no “trono” da sua cruz.

 

4. De modo algum ficariam vagas estas considerações, levando a sério as palavras de Ezequiel e de Paulo. E ainda menos, porque o Evangelho nos trouxe um magnífico trecho de Mateus, por demais claríssimo e incisivo, que não nos permite divagações nem demoras: “Quando o Filho do homem vier na sua glória, … dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai; recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber…’”.

Não há aqui hesitação alguma de ideia ou consequência prática. O Bom Pastor, que sempre nos procura, tem também – para não dizer que tem principalmente – o rosto e a voz de quem nos pede, como a fome e a sede de quem está faminto ou sequioso de quaisquer pão e água que aqui e agora hajam de ser, de corpo ou de espírito.

Na aparente simplicidade de tais palavras, vai a maior conversão a fazermos e a absoluta verdade cristã, sempre a questionarem uma “religiosidade” vulgar, que mais nos retivesse no que atavicamente ainda somos do que nos abrisse a Deus, como louvor, e ao próximo, como serviço.

Deus apresenta-Se-nos tanto ou mais no que nos pede do que naquilo que imediatamente nos desse… – Pois não foi assim junto ao poço de Jacob, pedindo Jesus à samaritana: “Dá-me de beber!”?! E não foi assim, finalmente assim, que bradou na cruz: “Tenho sede!”?! Irmãos: o primeiro serviço de Deus ao mundo é abrir o mundo a Deus. A Deus, presente – faminto e sequioso – em cada portador de cada fome, em cada sedento de água, vida e companhia solidária e fraterna.

E nós, amados irmãos, nós sabemos que é assim, exatamente assim. – Quantos testemunhos escutámos nós, do género: “Dediquei as minhas férias ou parte delas em ações de voluntariado e missão. Ao princípio custou-me, mas acabaram por ser as melhores férias da minha vida e fizeram de mim uma pessoa diferente, com mais disponibilidade, alegria e paz”. Ou ainda: “Passei os últimos anos da minha vida a cuidar dum familiar doente. Agora que partiu, tenho de dedicar-me a semelhantes causas de utilidade e serviço, pois já não consigo nem quero viver doutra maneira”?!

 

5. Poderíamos continuar, com tantas coisas ouvidas, sentidas ou pressentidas, igualmente assim, outros tantos sinais luminosos e concretos da realidade de Cristo e do seu reinado neste mundo. Mas continuemos em celebração, caríssimos leigos militantes, seminaristas rumo ao sacerdócio, ou vós que vos dispondes ao diaconado permanente e todos nós em geral:

Na Eucaristia, a realeza de Cristo continua a ser a sua entrega: “Isto é o meu corpo, entregue por vós!”. O altar é também o trono do Rei e Senhor das nossas vidas. E comungá-Lo no sacramento significa que assim mesmo o recebemos, para o continuar a receber em cada peregrino recolhido, em cada doente ou prisioneiro, de tantas fragilidades e cadeias…

Solenizemo-nos então, em Cristo Rei e Senhor do Universo. Reconheçamos no mundo – neste atribulado mundo que é o nosso, neste esperançoso mundo que é também – o único “trono” que Deus tem, indissoluvelmente ligado a cada uma das suas criaturas, como em Cristo selou connosco uma aliança eterna. – Em Cristo, reinar é servir; e é no serviço concreto dos outros que o reconhecemos e honramos, como nosso Senhor e Rei. Imprescindível e urgentemente agora!

Sé do Porto, 20 de novembro de 2011

D. Manuel Clemente. bispo do Porto

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