Homilia do Bispo do Porto na Solenidade da Imaculada Conceição

Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, alvorada de consagração e serviço

Amados irmãos e irmãs, reunidos para celebrar a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria e a feliz Ordenação de dezassete diáconos permanentes:

Não são motivos dissonantes os que nos trazem aqui. Distintos são, certamente; mas bem consonantes, naquilo mesmo a que poderemos chamar uma alvorada de consagração e serviço.

Nem podia ser doutra forma, porque a imaculada conceição de Maria é o primeiríssimo fulgor do inestimável “serviço” do próprio Deus à humanidade, que recriou em Cristo. Primeiro e prévio fruto da redenção de Cristo, Maria foi a “nova terra” onde o Homem novo pôde recomeçar a aventura humana, sem repetir a falta que tanto nos lesou.

Contava-nos a 1ª Leitura que a desobediência dos primeiros – do homem e da mulher dele formada (cf. Gn 2, 21 ss) – os escondeu de Deus, como lhes ensombrou a vida. Na nova criação – e por ordem diferente no que à humanidade respeita –, é o homem que nasce da mulher, porque esta mesma foi criada em função da humanidade nova de Cristo, na inteira luz de que Maria foi a alvorada. Como São Paulo escreveu aos Gálatas: “Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, […] a fim de recebermos a adopção de filhos” (Gl 4, 4-5). Por isso Jesus foi chamado “o filho de Maria” (cf. Mc 6, 3); por isso todos nós, discípulos de Cristo, o somos também (cf. Jo 19, 26).

Fomos criados por Deus e para Deus, retribuindo-Lhe a vida que nos ofereceu. Pecado – das origens desgraçadamente continuadas – é reter o que deve perpassar-nos, para chegar a todos, e só em Deus se pode escoar, como pequeno rio em imensa foz.

Falar de “consagração”, como se refere a Cristo e a Maria – a Maria em função de Cristo – é dizer isso mesmo, que a vida recebida só se consolida na raiz e realiza na oferta a Deus. Maria foi saudada pelo Arcanjo como “cheia de graça” – modo positivo de referir a sua imaculada conceição, pois nela tudo é dom recebido, consentido e oferecido, sem mancha de negação ou recusa -, para que a sua humanidade pudesse ser a de Jesus, traduzindo a absoluta obediência ao Pai, que eternamente O gera e recebe.

Por isso, consagração é entrega a Deus, novo sacrifício da Aliança nova, realizado por Cristo, na humanidade intacta que recebeu de Maria e divinamente culminou. Não foi simples continuação da humanidade antiga; foi e continua a ser a nova criação, onde finalmente nos realizamos como filhos de Deus e irmãos universais; em Cristo, Filho de Maria, por obra e graça do Espírito Santo.

Esta novidade toca-nos desde o Baptismo e realiza-nos “em Cristo”, envolvidos pela maternal protecção de Maria. Esta é, irmãos caríssimos, a verdade e a graça da vida cristã, nascida daquele “sim” que há pouco escutámos: “Maria disse então: ‘Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra’”.

Por isso vos dirijo também estas palavras, que posso intitular “Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Alvorada de Consagração e Serviço”.

 

Na 2ª Leitura, incluiu São Paulo um magnífico hino, com estas palavras começado: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença”. O mesmo é dizer que, em Cristo, Filho de Maria, somos recriados para a consagração e o serviço, em universal caridade.

Esta é a nova condição que a humanidade ganha, porque a recebe de Deus e para Deus, todos para todos em Cristo. Maria assim foi, desde a imaculada conceição que recebeu em função de Cristo; Maria assim foi, no consentimento pleno que deu a tal graça, em fiel seguimento do seu Filho, do Presépio ao Gólgota; e depois, da Ressurreição ao Pentecostes, quando o Espírito começou a realizar na Santa Madre Igreja o que em Maria começara na Anunciação, ou seja, a geração de Cristo no mundo e para a salvação do mundo. Atestam-no multidões sucessivas de baptizados, filhos de Maria e irmãos de Cristo, para glória de Deus Pai. Isto somos, isto só havemos de ser: um mistério vivo e prolongado de consagração e serviço.

É também este o serviço da Igreja ao mundo e para a consagração do mundo, através do coração e da obra dos filhos de Deus e de Maria, que somos em Cristo. O que Maria foi pela sua imaculada conceição, inteiramente consagrada a Deus e ao seu serviço, incarnando e oferecendo Cristo, na força do divino Amor, isto havemos de ser nós pelo Baptismo, desdobrado em distintas participações sacramentais.

 

Hoje o celebramos, muito especial e felizmente, no diaconado destes irmãos, que para tal se prepararam e a tal se dispõem.

Trata-se do sacramento da Ordem, que, nos vários graus, manifesta Cristo na comunidade cristã: ou como sacerdote – no episcopado e no presbiterado –, ou como servidor, no diaconado. Sempre em função e serviço de todos os cristãos, que, também pela acção dos ministros ordenados, hão-de crescer em sacerdócio comum e diaconia aplicada, assim activando a consagração do mundo e a caridade universal, inteiramente realizadas em Cristo e constantemente difundidas pelo Espírito.

No que aos diáconos respeita, é importante e urgente que em todos e cada um deles se realize sacramentalmente a auto-definição de Cristo, como a deu um dia e se repete agora: “… o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. […] Eu estou no meio de vós como aquele que serve [= como um diácono]” (Lc 22, 26-27).

Caríssimos ordinandos de diácono: Está aqui a vossa identidade específica, seja qual for a contribuição concreta que a Igreja vos peça, nas vossas comunidades e na Diocese. Seja ao serviço da Palavra divina, seja no âmbito sacramental, seja na acção sócio-caritativa ou administrativa, em tudo isto tendes lugar próprio e atribuições específicas, variando certamente com as disponiblidades e urgências de cada tempo e lugar.

Assim também no que diz respeito à vossa vida familiar e à vossa presença no vasto mundo social e profissional, que não é secundário às vossas atribuições, muito pelo contrário. Mas em tudo isso, o mais importante e identificativo dum diácono é a realização sacramental daquela auto-definição de Cristo: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve”.

Sabereis que sempre tenho insistido neste ponto, quer falando convosco, quer com os vossos párocos e outros responsáveis eclesiais, sobretudo quando se trata de escolher e propor candidatos ao diaconado: hão-de ser, antes de mais e acima de tudo, aqueles que na comunidade cristã já se distingam pelo espírito de serviço, os mais humildes, os mais prontos e disponíveis, os mais capazes e propensos a responder à necessidade dos pobres de todas pobrezas e às maiores urgências de dentro ou fora da Igreja. Isto sois, certamente, e isto sereis ainda mais, pela graça do sacramento que agora recebeis. Esta a vossa glória, que mais vos identificará com Cristo, diácono de nós todos.

E deixai-me dizer-vos que conto muito convosco, para que a nossa Igreja Portucalense possa crescer sempre mais nesta fundamental dimensão da diaconia. Com o tempo e a vossa cooperação, o ministério sacerdotal dos outros graus da Ordem ficará mais definido também, pela aplicação mais específica dos respectivos ministros na Eucaristia e na Reconciliação, bem como no acompanhamento espiritual dos fiéis; com o tempo e a vossa indispensável cooperação, caríssimos diáconos de hoje e amanhã, ficará mais evidente e prático que consagração e serviço são os dois movimentos constantes da vida eclesial, do mundo ao altar e do altar ao mundo, até ao “Domingo que não tem ocaso”.

Por isso – e mesmo liturgicamente – trareis como diáconos o mundo ao altar, onde sereis os imediatos ajudantes do sacerdote; e sereis depois os primeiros a levar a todos a oferta de Cristo, Luz e Vida do mundo. Convosco trareis os vossos irmãos leigos – em cuja condição familiar e profissional geralmente participais – e convosco, com o vosso exemplo e estilo, humilde e prestável, os estimulareis também, para serem cada vez mais assim, na caridade universal de Cristo.

– Felicíssima hora foi aquela, caríssimos irmãos e irmãs, e magnífica inspiração do Alto, em que o Concílio Vaticano II decidiu restaurar o diaconado permanente! Fê-lo com as seguintes palavras, sempre de recordar, como recordadas foram pelo magistério subsequente: “No grau inferior da hierarquia estão os diáconos, que recebem a imposição das mãos, ‘não para o sacerdócio mas para o ministério’. […] recordem os diáconos o conselho de S. Policarpo: ‘Misericordiosos e diligentes, procedam em harmonia com a verdade do Senhor, que se fez servidor de todos’. Tendo em conta que, segundo a disciplina actualmente em vigor na Igreja latina [1965], em várias regiões só dificilmente são desempenhadas estas funções [diaconais], tão necessárias para a vida da Igreja, daqui em diante poderá o diaconado ser restabelecido como grau próprio e permanente da hierarquia” (Lumen Gentium, nº 29).

Assim aconteceu na Diocese do Porto – então pastoreada por D. Júlio Tavares Rebimbas, que Deus tenha em santa glória -, com os primeiros diáconos permanentes; assim continua agora, por vontade geral do presbitério e grande urgência do tempo.

Para responder, mais e melhor, às necessidades da Igreja, onde um número escasso de presbíteros se tem de concentrar cada vez mais no que lhe é específico; para realçar a natureza da Igreja, que, em Cristo, está no mundo “como quem serve”; e para que a “nova evangelização”, com o “novo ardor” do Espírito divino, encontre “novos métodos e novas expressões” de caridade e serviço, para responder também às imensas necessidades materiais e espirituais a que devemos absolutamente atender.

– Quase a concluir a Missão 2010, vós sois, caríssimos ordinandos de diácono, a mais promissora expressão sacramental de que a Igreja, em Cristo e com Maria Imaculada, é e será sempre uma comunidade de consagração e serviço!

Sé do Porto, 8 de Dezembro de 2010

+ Manuel Clemente

 

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