Homilia do bispo do Funchal na solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

“Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher e sujeito à Lei, para redimir os que estavam sujeitos à Lei, e pudéssemos receber a filiação adotiva” (Gal 4,4b-5).

 

  1. A Liturgia destes dias de Natal, longe de se perder na apresentação de uma cena idílica (mesmo ideal) de um surgimento de Deus fora do tempo e do espaço, convida-nos antes a centrar a atenção num acontecimento da história: o nascimento de Deus em nossa carne.

Como escutámos na IIª Leitura: Deus despediu o Seu Filho, mandando-o ao seio do tempo, fazendo-O assumir a natureza humana, sujeitando-o às prescrições da Lei de Moisés para nos resgatar da sujeição da Lei e nos fazer seus filhos adotivos.

São os mesmos dois movimentos que encontramos no célebre hino da Carta aos Filipenses que S. Paulo nos reporta (Filp 2,6-11), e nos quais a salvação que Cristo nos ganhou aparece de um modo quase visual:

“Sendo na forma de Deus,

Ele não usou o seu direito de ser tratado como Deus,

mas esvaziou-se a si próprio

assumindo a forma de escravo.

Tornando-se semelhante ao homem

e no seu aspeto sendo achado como homem,

humilhou-se a si próprio,

tornando-se obediente até à morte,

à morte numa cruz.

Por isso, Deus de sobremaneira o elevou

e lhe deu o nome que está acima de todo o nome,

para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho

nos céus, na terra e debaixo da terra,

e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,

para glória de Deus Pai”.

 

O acontecimento da salvação consiste neste movimento de humilhação e glorificação do Filho de Deus que se faz homem para — como diz S. Paulo — nos libertar da sujeição à Lei e nos tornar filhos adotivos. Desceu ao nosso abismo para nos elevar à glória da Sua Vida.

A “Lei” significa, nesta passagem, todo o conjunto de normas e prescrições que, de acordo com a Antiga Aliança, o homem deveria realizar para se poder apresentar como justo diante de Deus. São as capacidades, as ações, o querer do homem quando atua exclusivamente a partir de si próprio, mesmo quando procura fazer o bem. É esta Lei que mostra a nossa real incapacidade de chegar a Deus com as nossas forças.

Ao fazer-se homem, ao viver como homem, Jesus cumpriu por nós toda a Lei — amou a Deus com todo o coração e amou o próximo como a si mesmo. Como o próprio Senhor afirmou: “não penseis que tenha vindo abolir a Lei ou os profetas; não vim abolir mas cumprir plenamente” (Mt 5,17). Apenas nele a Lei ficou foi plenamente cumprida e realizadas todas as suas exigências. Por isso, é em Jesus Cristo — apenas nele — que o homem se pode apresentar diante do Pai. Fá-lo como membro do corpo do Filho Único de Deus. Fá-lo como “filho adotivo”.

É a vida cristã como “vida em Cristo”: vivendo unidos a Cristo, cumprimos, também nós, a Lei, e recebemos a sua condição de Filho, a sua filiação. Podemos chamar a Deus por Pai — como acontece na oração que o Senhor ensinou e que ousamos rezar todos os dias.

Tudo isto é possível porque o Senhor nos quis “resgatar”. O preço do resgate foi a sua humilhação: fez-se homem, deixando a qualidade de Senhor e assumindo o lugar de escravo; cumpriu a Lei; e uniu-se de tal forma a cada um de nós que, por nós, pagou o “salário do pecado” que é a morte (cf. Rom 6,23) — e morte de cruz. Mas uniu-se também de tal forma a cada um de nós que nos transmitiu a Sua singular condição de filho. Tudo sem qualquer merecimento da nossa parte.

Desapareceu por isso — como afirma também S. Paulo noutra passagem — qualquer motivo de glória humana (cf. Rom 3,27). O que existe é, apenas, o amor de Deus por cada um e por todos: Amor provado, vivido até ao fim, sofrido até à morte de cruz. Este é o cuidado de Deus por cada um de nós e por todos — cuidado que não deixará nunca de nos surpreender; que não deixaremos nunca de contemplar, cheios de admiração; e, ao mesmo tempo, cuidado a que não deixaremos também de procurar corresponder, não tanto com as nossas pobres forças (sempre inclinadas para o pecado) mas com a graça que nos é dada: “como hei-de agradecer ao Senhor tudo quanto me deu? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”, diz o salmista (Sl 116,12-13).

  1. Bernardo de Claraval, num dos seus sermões, ajuda-nos a entender este misterioso cuidado de Deus por cada um de nós:

“Veio em carne para se revelar aos que eram de carne e para que, ao manifestar-se a sua humanidade, fosse reconhecida a sua bondade. De facto, se Deus dá a conhecer a sua humanidade, já não pode ficar oculta a sua bondade. Como podia o Senhor manifestar melhor a sua bondade, senão assumindo a minha carne? Foi precisamente a minha carne que Ele assumiu. […]

Poderá haver maior prova de amor, do que tornar-se o Verbo de Deus tão humilde como a erva do campo? Senhor, que é o homem para que vos lembreis dele, para que vos preocupeis com ele? Compreenda assim o homem até que ponto Deus tem cuidado dele; reconheça bem o que Deus pensa e sente a seu respeito. Não perguntes, ó homem, porque tens de sofrer tu; pergunta antes porque sofreu Ele. Por aquilo que Ele fez por ti reconhece quanto vales para Ele e compreenderás a sua bondade através da sua humanidade. Quanto mais pequeno se fez na sua humanidade, tanto maior se revelou na sua bondade; quanto mais se humilhou por mim, tanto mais digno é agora do meu amor” (S. Bernardo, Sermo 1 in Epiphania Domini 1-2; LH I, 403).

 

  1. É deste cuidado de Deus que, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz que hoje decorre, o Papa Francisco nos convida a ser presença e espelho. Convida-nos o Santo Padre a uma “cultura do cuidado”, quer dizer: ao “compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos; […] disposição a interessar-se, a prestar atenção; disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco” (n. 9).

E, em consequência, convida-nos o Papa à promoção da dignidade e dos direitos da pessoa; ao cuidado pelo bem comum; ao cuidado pelos pobres e indefesos; ao cuidado por toda a criação. E acrescenta: “encorajo todos a tornarem-se profetas e testemunhas da cultura do cuidado, a fim de preencher tantas desigualdades sociais” (n. 7). E conclui: “Não cedamos à tentação de nos desinteressarmos dos outros, especialmente dos mais frágeis; não nos habituemos a desviar o olhar, mas empenhemo-nos cada dia concretamente por formar uma comunidade feita de irmãos que se acolham mutuamente e cuidem uns dos outros” (n. 9).

 

  1. A Virgem Maria, que hoje celebramos como Mãe de Deus, é a expressão máxima deste cuidado. Como Mãe, ofereceu a sua natureza para que, através dela, Deus assumisse a carne humana; como Mãe, cuidou do Salvador e acompanhou-O pelos caminhos da Galileia até à cruz; como Mãe, cuidou dos cristãos desde o dia de Pentecostes até hoje. “Temos Mãe” — recordava-nos o Papa em Fátima.

Ao iniciarmos mais um ano, cheio de imensos desafios para toda a humanidade, façamos aqui o nosso propósito de espalhar e promover à nossa volta a cultura do cuidado: cuidado do próximo, cuidado de Deus.

 

Sé do Funchal, 1 de janeiro de 2021

D. Nuno Brás, bispo do Funchal

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