Homilia do bispo de Lamego no Dia Mundial da Paz

Com a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, o título por excelência, o mais antigo e mais importante, com que o Povo de Deus invoca Nossa Senhora, a Liturgia convida-nos a começar o Ano Novo, voltando-nos para Ela. N’Ela fixamos o nosso olhar e a nossa atenção, para lermos nos Seus gestos e nas Suas palavras o comportamento que nos aconselha em ordem a vivermos como verdadeiros discípulos do Filho que d’Ela nasceu, a quem puseram o nome de Jesus. Ela é a primeira crente, modelo perfeito a imitar. Não queremos esquecer a recomendação do Servo de Deus, João Paulo II, para frequentarmos a Sua escola. Vale a pena lembrar as suas palavras: “Cristo é o Mestre por excelência, o revelador e a revelação. Não se trata somente de aprender as coisas que Ele ensinou, mas de «aprendê-Lo a Ele». Porém, nisto, qual mestra mais experimentada do que Maria? Se do lado de Deus é o Espírito, o Mestre interior, que nos conduz à verdade plena de Cristo, de entre os seres humanos, ninguém melhor do que Ela conhece Cristo, ninguém como a Mãe pode introduzir-nos no profundo conhecimento do seu mistério. […] Uma escola, a de Maria, ainda mais eficaz, quando se pensa que Ela a dá obtendo-nos os dons do Espírito Santo com abundância e ao mesmo tempo, propondo-nos o exemplo daquela «peregrinação da fé», na qual é mestra inigualável. Ela convida-nos, como na Sua Anunciação, a colocar as perguntas que abrem à luz, para concluir sempre com a obediência da fé: «Eis a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra» ”.

Neste vale de lágrimas cada vez mais choradas e sofridas por nós, os degredados filhos de Eva, com uma existência agravada pela tão falada crise, necessitamos do seu patrocínio, como Medianeira de todas as Graças, que volva sobre nós o seu olhar, para encontrarmos a esperança que não desilude, e saibamos testemunhar a solidariedade cada vez mais urgente e indispensável. Trata-se da esperança, fruto da mensagem cristã, fidedigna, como a qualifica Bento XVI, na sua encíclica Salvos na Esperança, esperança, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo com aquele espírito, reflectido na mesma encíclica, citando S. Paulo na carta aos Efésios, lembrando-lhes que antes do encontro com Cristo estavam «sem esperança e sem Deus no mundo»; ou a recomendação aos Tessalonicenses: não deveis entristecer-vos como os outros que não têm esperança. “Aparece aqui como elemento distintivo dos cristãos o facto de estes terem um futuro: não é que conheçam em detalhe o que os espera, mas sabem em termos gerais que a sua vida não acaba no vazio. Somente quando o futuro é certo como realidade positiva, é que se torna visível também o presente. Sendo assim, podemos agora dizer: o cristianismo não era apenas uma «boa nova», ou seja uma comunicação de conteúdos até então ignorados. Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só «informativa», mas «performativa». Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.” Permiti que partilhe convosco um pensamento de Bento XVI na homilia de Vésperas, ontem à tarde, na Basílica de S. Pedro: “O nosso tempo humano está carregado de males, de sofrimentos e de dramas de todo o género, tanto daqueles que são fruto da maldade dos homens, como daqueles que resultam de calamidades naturais, mas contém já de maneira definitiva e indelével a jubilosa e libertadora novidade de Cristo Salvador.”

Nossa Senhora, Mãe da Santa Esperança, é o caminho privilegiado de que Deus quis precisar, para que a cada um chegue a Bênção referida a Moisés, e por Aarão e seus filhos rezada sobre os filhos de Israel, segundo a ordem do Senhor, como ouvimos na primeira leitura. É que Ela é a mulher falada na Carta aos Gálatas, que no Seu seio puríssimo gerou o Filho que na plenitude dos tempos Deus enviou para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar Seus filhos adoptivos.

Mas o primeiro dia do ano é, por determinação de Paulo VI, de há quarenta e quatro anos para cá, o Dia Mundial da Paz. Ao longo deste quase meio século, temas variados sempre oportuníssimos nos foram propostos pelos respectivos Papas, a estimular a nossa reflexão e o nosso compromisso.

Os tempos que vivemos são muito duros e difíceis. Não faltam atentados contra a paz em várias nações enumeradas por Sua Santidade Bento XVI na última mensagem natalícia, antes da Bênção Urbi et Orbi, do Dia de Natal: Somália, Darfur, Costa de Marfim, Madagáscar, Afeganistão, Paquistão, Nicarágua e Costa Rica e Península da Coreia. A instabilidade, acompanhada da violência e do roubo, vai-se verificando em regiões tradicionalmente de tranquilidade e de sossego, para não falar da agressividade nas palavras e nos gestos, mesmo dentro do santuário das famílias que deveriam ser a primeira escola de paz e de convívio carregado de amor, com a nunca suficientemente denunciada violência doméstica.

O tema escolhido por Bento XVI para este Dia Mundial da Paz é a Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. O Santo Padre formula no princípio da Mensagem votos de serenidade e prosperidade, mas sobretudo votos de paz, porque “ infelizmente também o ano que encerra as portas esteve marcado pela perseguição, pela discriminação, por terríveis actos de violência e de intolerância religiosa”. E recorda nomeadamente e “em especial o «vil ataque» contra a catedral siro-católica  de «Nossa Senhora do Perpétuo Socorro» em Bagdad, onde no passado dia 31 de Outubro, foram assassinados dois sacerdotes e mais de cinquenta fiéis, quando se encontravam reunidos para a celebração da Santa Missa”.

A partir desta constatação, o Santo Padre faz uma importantíssima reflexão que vos convido a meditar serenamente, e da qual gostaria de deixar-vos agora em jeito de partilha, apenas alguns breves pensamentos expostos por Sua Santidade que deverão fundamentar a verdade da liberdade religiosa e a autenticidade da tolerância.

Sua Santidade é determinante quando diz: “Na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; – para concluir peremptoriamente – isto significa tornar impossível a afirmação duma paz autêntica e duradoura para toda a família humana.

E depois de afirmar que “uma liberdade hostil ou indiferente a Deus acaba por se negar a si mesma e não garante o pleno respeito pelo outro”, assegura Bento XVI que para lá da mera tolerância, a liberdade religiosa é a medula, o núcleo, de toda a moralidade e liberdade, do respeito recíproco, da paz. Neste contexto porém, insere a afirmação: “A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, na realidade a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos.”

Bento XVI denuncia com veemência o fanatismo e o fundamentalismo e o laicismo, expressões de tendência oposta, mas igualmente perigosas. “A instrumentalização da liberdade religiosa para mascarar interesses ocultos, como por exemplo a subversão da ordem constituída, a apropriação de recursos ou a manutenção de poder por parte de um grupo, pode causar danos enormes às sociedades. O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e muito menos ainda o podem ser, se realizadas em nome da religião. […] Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio da laicidade.”

É na sequência daquele laicismo que entre nós procura retirar-se da esfera do público a religião ou seus símbolos, e com a capa hipócrita duma isenção imparcial, se descriminam alguns sectores da actividade da Igreja, designadamente no campo do ensino, esquecendo a benemerência prestada à sociedade ao longo dos tempos.

Recordando o 25.º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz convocada para Assis por João Paulo II, com a participação dos líderes das grandes religiões do mundo, Bento XVI sublinha como as religiões são factor de união e de paz e não de divisão e conflito. Na reflexão do Angelus de hoje revelou que ele próprio se fará peregrino de Assis, em Outubro, comemorando essa data.

E o Santo Padre conclui a sua densíssima e riquíssima mensagem com um convite a “todos aqueles que desejam tornar-se obreiros da paz e sobretudo os jovens, a prestarem ouvidos à própria voz interior, para encontrar em Deus a referência estável para a conquista duma liberdade autêntica. […] A liberdade religiosa é uma autêntica arma da paz, com uma missão histórica e profética. De facto ela valoriza e faz frutificar as qualidades e potencialidades mais profundas da pessoa humana, capazes de mudar e tornar melhor o mundo; consente alimentar a esperança num futuro de justiça e de paz, mesmo diante das graves injustiças e das misérias materiais e morais. Que todos os homens e as sociedades aos diversos níveis e nos vários ângulos da terra possam brevemente experimentar a liberdade religiosa, caminho para a paz!”.

Que pela intercessão de Santa Maria, Mãe de Deus, Rainha da Paz, o dom divino da Paz entre no nosso coração, e o Novo Ano de 2011 seja pleno de Graça e do Amor de cada um, para com Deus e todos os homens. São estes os meus votos. Amem

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