Homilia do bispo de Beja na celebração da Paixão e Morte do Senhor

Reverendo Senhor Padre Provincial dos Capuchinhos, Senhores Cónegos, Padres e Diáconos, Religiosos e Religiosas, Seminaristas, e fiéis leigos:

Estamos reunidos na Igreja Mãe desta diocese, neste dia em que não há Eucaristia. Estamos reunidos para comemorar a Morte do Senhor Jesus Cristo. Os paramentos são vermelhos, porque se trata do martírio do Filho de Deus, feito Homem por nosso amor. O seu martírio, fonte da graça e do perdão, é o lugar do nascimento da Igreja, nossa Mãe. Convido-vos, irmãos, a meditar em alguns aspetos deste mistério admirável, fonte de vida eterna para todos nós que acreditamos e vivemos a vida do Filho de Deus crucificado e ressuscitado.

1 – Contemplando Cristo crucificado, a primeira constatação pode ser esta: os pensamentos de Deus são muito diferentes dos nossos, e os seus desígnios absolutamente incompreensíveis para nós. Quem poderia imaginar que a salvação do mundo viria da morte do Filho de Deus crucificado? S. Paulo, o fariseu que tinha posto a sua glória no cumprimento exaustivo da Lei, diz-nos que tudo aquilo que dantes tinha sido para ele motivo de enaltecimento o considerava como lixo perante o conhecimento de Jesus Cristo e da Sua sabedoria manifestada na Cruz. Ele escreve aos Coríntios, lembrando-lhes como chegou a essa cidade, depois do fracasso que teve em Atenas, onde pregou com a sabedoria da sua admirável cultura:

Não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; a minha palavra e a minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demonstração de Espírito e poder, a fim de que a vossa fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus (1Cor 2,2-5).

E mais adiante,

Ensinamos a sabedoria de Deus misteriosa e oculta que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória. Mas como está escrito, o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, tudo o que Deus preparou para os que O amam. A nós porém Deus o revelou pelo Espírito (1Cor 2,7-10).

Onde está, queridos irmãos e irmãs, nas nossas comunidades, esta sabedoria, este Espírito surpreendente? Certamente não é Ele quem alimenta divisões e contendas, e quem leva pessoas religiosas que comungam o Corpo de Cristo a passar por outras sem lhes falar! Temos de reconhecer que, infelizmente, é desconhecida por um grande número de pessoas batizadas na Igreja Católica, a sabedoria da Cruz!

Somos cristãos. Ao sermos batizados fomos mergulhados na morte de Cristo. Morremos com Ele e com Ele fomos sepultados. A vida que temos agora vivemo-la na fé de Cristo morto e ressuscitado, e orientamo-nos por esta sabedoria misteriosa, oculta a quem vive segundo a carne. Deixemo-nos, irmãos, guiar pelo Espírito de Cristo, por este Espírito que Ele nos deu ao morrer na Cruz, Espírito que tem o poder de nos revelar, no concreto das nossas vidas, esta sabedoria divina.

2 – Estamos tão habituados a esta linguagem cristã, que pode parecer-nos um exagero do Sinédrio a causa da condenação de Jesus: a sua afirmação de que Ele, verdadeiro Homem, é Filho de Deus. Sabeis, caros irmãos e irmãs, qual é o específico dos discípulos de Jesus, dos cristãos? O que é que o Batismo nos dá e faz de nós pessoas diferentes de todas as outras? Esse mesmo exagero: tornamo-nos filhos adotivos de Deus. Esta expressão filhos de Deus não é apenas um jogo de palavras: ao sermos batizados recebemos o Espírito Santo que faz de nós, que somos homens e mulheres e que temos a natureza humana, participantes da própria natureza divina. Deus é amor. Este amor que Deus nos oferece é a sua própria natureza. Vivemos para quê? Para ganhar muito dinheiro, para termos saúde, para gozarmos a vida? Vivemos para ser filhos de Deus, no amor. Vivemos para caminhar para Deus, para ser eternamente felizes amando a Deus e amando o próximo.

3 – Na Vigília da Páscoa, a Liturgia Batismal tem um relevo muito grande. Tudo converge para a renovação das promessas do Batismo nas quais, depois de termos renunciado ao pecado e ao demónio, professamos solenemente a nossa fé cristã, de vela acesa na mão e com o coração a transbordar de amor. Realmente, o amor é a chave da vida cristã. Cristo morreu por nós, quer dizer, em vez de nós, em nosso favor, por amor de nós. Custa-nos hoje compreender que alguém possa dar a sua vida por outra pessoa. Custa-nos compreender como é que Jesus, há dois mil anos, pôde carregar com os pecados do mundo inteiro, de todos os tempos e lugares. E dificilmente podemos compreender como é que a sua salvação pode chegar até nós que vivemos no século XXI. Sendo verdadeiramente Homem, Jesus é o Verbo de Deus, por quem e para quem tudo foi criado. Por Ele e para Ele tudo foi criado, e n’Ele tudo subsiste (Col 1,17). Estas palavras de S. Paulo dizem-nos que o facto de estarmos vivos se deve a Cristo, pois é n’Ele, no seu amor, que tudo subsiste. Amor com amor se paga, diz o nosso povo. A única verdade, para nós, é amar Jesus Cristo. Tudo o resto é vaidade e corrida atrás do vento. A moral cristã é uma moral de resposta: amemos, porque Ele nos amou primeiro.

Antigamente, o centro da casa de família era a sala do Senhor, era o oratório, a Cruz gloriosa de Cristo Jesus. Nessa sala se reunia a família para rezar, para conversar, para cultivar a comunhão entre todos os seus membros, comunhão que tinha as suas raízes no amor de Cristo, que deu a sua vida por nós. E hoje? Quantas casas de gente batizada, repletas de pinturas e imagens, algumas valiosas, mas sem uma Cruz? O sinal da Cruz é o sinal cristão por excelência, e devemos honrá-lo e glorificá-lo. É ele quem nos mostra o verdadeiro amor, o verdadeiro sentido da vida, e a sua ausência das nossas vidas abre a porta a toda esta confusão entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Somos cristãos, marcados pelo sinal da Cruz, e não podemos envergonhar-nos dela. Quem se envergonha de Alguém que é para si fonte da vida e do amor?

4 – A propósito de amor, é grande a confusão na nossa sociedade hedonista. Chama-se amor a muita coisa que não é senão a sua negação. Que é o amor? A primeira carta de S. João diz-nos:

Nisto conhecemos o amor: Jesus deu a sua vida por nós e nós devemos dar a vida pelos irmãos (1Jo 3,16).

Não se trata de sentimentos de ternura, mas de dar a vida, de morrer por alguém que amamos. Jesus ama-te e deu a sua vida por ti, não por seres merecedor, mas gratuitamente. Amou-te quando eras malvado e pecador. Se te reconheces amado por Cristo, se vives a partir d’Ele e para Ele, tu podes dar aos outros o que eles não podem oferecer-te. Podes amar os teus inimigos, podes fazer bem àqueles que te fazem mal. Descobrirás então que o verdadeiro inimigo que tu não deves amar é o demónio, e experimentarás que o mal que alguém nos faça, concorre sempre para o nosso bem. Por isso, queridos irmãos, precisamos de contemplar frequentemente a Cristo crucificado, como fonte da vida e do amor de que precisamos para amar os nossos irmãos. Precisamos de receber d’Ele, para darmos aos que nos rodeiam.

5 – Como sabeis, a Igreja convida-nos, neste dia, a adorar a Cruz do Senhor, a adorar o Senhor crucificado. Fazei este gesto lucidamente, com o espírito iluminado pela sabedoria da Cruz. Lembra-te, querido irmão, que ao beijares a Cruz do Senhor te dispões a segui-l’O em cada dia, carregando com a tua cruz. Lembra-te também de que a Cruz se pode aceitar e viver de cima para baixo e de baixo para cima. De cima para baixo esmaga-te, leva-te a um túmulo, ou seja, ao velho Adão; de baixo para cima liberta-te, leva-te ao Céu e abre os teus braços para acolher os irmãos, assim como são, sem os escolheres. Tomar a Cruz todos os dias, é viver a fé, a esperança e a caridade, as três virtudes teologais que expressam a vida divina recebida de Cristo. Adorar hoje a Cruz do Senhor ajudar-nos-á a segui-l’O como discípulos em cada dia da nossa vida, proclamando que toda a nossa glória está, de facto, na sua Cruz salvadora.

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