Homilia do bispo das Forças Armadas na Noite de Natal

Caros irmãos

1. “Não temais”, foi a saudação do Anjo aos pastores na noite do Nascimento de Jesus (Lc 2, 10), mas foi também a PRIMEIRA PALAVRA pronunciada após esse nascimento. Trata-se, por isso, de uma palavra inaugural que prepara os novos tempos iniciados por Cristo. Tempos de salvação e de presença de Deus, encarnada em Cristo, na história do mundo e na vida da humanidade. Um apelo que não brota da efemeridade do voluntarismo, nem do fugaz desejo da coragem, mas radica na certeza de que “hoje vos nasceu um Salvador” (Lc 2, 11). Este mesmo hoje salvífico acontecerá a Zaqueu quando encontra Jesus, acolhendo-O na sua vida. E é exatamente esse encontro que o leva a uma transformação radical. Então, o Senhor dirá «hoje veio a salvação a esta casa» (Lc 19, 9).

Todo o “hoje” é momento e lugar de salvação porque, com o seu nascimento na carne, o Filho de Deus, Verbo eterno do Pai, irrompeu no tempo, fazendo de todo o tempo atualidade de salvação e do hoje de cada ser humano um apelo salvífico.

Também a nós vem dirigido o mesmo convite para não ter medo, pois é neste hoje de cada um de nós que se atualiza e acontece a salvação. Não tenhas medo nem da morte, nem do pecado, nem da ameaça do vírus, nem do futuro da humanidade. Porque o nascimento de Jesus acontece dentro do tempo da nossa vida, onde todo o ser humano realiza e vive a sua humanidade.

2. A partir da Luz que brota do Mistério do Nascimento de Jesus — que celebramos esta noite —, abre-se-nos a porta através da qual nos é proposto o caminho para Deus e, simultaneamente, o encontro com a humanidade. Ou melhor ainda, com a encarnação do Filho de Deus, o mundo dos homens tornou-se a morada, a pátria de Deus. Por isso, se naquela noite venturosa os pastores, que guardavam os seus rebanhos nos arrabaldes de Belém, foram enviados à periferia da sociedade para aí encontrarem o Deus Menino «envolto em panos e deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12), agora nós somos enviados, a partir do Presépio, ao encontro da humanidade que está envolvida numa terrível pandemia e deitada no leito penoso de uma complexa crise. Crise social, mas também humanista. Vamos, pois, ao encontro da humanidade neste ano de 2020.

3. Reconhecemos que as principais vicissitudes históricas que marcaram de forma indelével o presente ano constituem um forte apelo aos Valores e à ética na medida em que, só com estes, a sociedade fica suficientemente forte e munida das condições necessárias para enfrentar e combater tais vicissitudes. Sim, tanto a pandemia da COVID-19, como os atentados à vida e à dignidade do ser humano perpetrados no sagrado solo pátrio se revelaram autênticos «inimigos» que apenas as armas do caráter, da espiritualidade e da ética conseguem vencer. Coincidentemente, é o Mistério do Natal que gera e traz à existência tais valores. É, pois, maravilhoso contemplar o Nascimento de Jesus como projeto de uma nova humanidade, donde irrompe um dinamismo espiritual e ético para trilhar o caminho da sua realização, encarnando cada um na sua vida e ação os critérios próprios de Jesus Cristo, assentes na vontade do Pai.

Assim, apraz-me vislumbrar na «Luz que brilhou nas trevas» (Jo 1, 5) a irrupção dos valores que, respondendo à urgência do presente, nos abrem construtivamente para um novo horizonte do mundo:

4. O primeiro desses valores, é o rosto da solidariedade. Na fragilidade da criança deitada na manjedoura de Belém está contida toda a força do amor de Deus que, para nos salvar, se fez um de nós, veio partilhar a nossa condição e é, enquanto Um de nós, que nos reergue para uma nova história, nos anima com a novidade da vida divina e eterna. Há, de facto, um antes e um depois marcado pelo nascimento de Jesus, marco esse constituído pela partilha da nossa condição e natureza, verdadeira fonte de onde jorra a vida abundante. Assim, o mistério da multiplicação dos pães, sinal de vida copiosa, ocorrida no monte deserto junto ao lago da Galileia (cf. Mc 6, 36), já fora antecipado na periferia de Belém quando daquele Menino brotou mais Vida, pois como Ele mesmo diz «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).

A pandemia veio despertar o mundo para a cultura da solidariedade, porque, de facto, ninguém se salva sozinho, mas só Cristo é o derradeiro Salvador da humanidade. Quando em cada um de nós, Cristo presidir para a salvaguarda do outro, certamente que venceremos os perigos associados ao vírus. Por outro lado, a pandemia transformou-se numa assombrosa fábrica de pobreza, de desemprego e de marginalização, que só o espírito de partilha, de entreajuda e de solidariedade conseguirão resolver. Enquanto cristãos, sintamo-nos animados do ardor de tal espírito e iluminados pela luz que daí irradia.

5. O segundo valor que o Natal nos oferece é a alma da confiança. Desde o anúncio do Arcanjo Gabriel a Nossa Senhora, de que iria ser a mãe do Filho do Altíssimo, passando pelo seu efetivo nascimento, até à proclamação pelos anjos aos pastores da grande alegria que “hoje nasceu o Salvador”, assiste-se à reproposta do refrão «Não temas», dirigido à Virgem Maria (Lc 1, 30), a S. José (Mt 1, 21) a Zacarias (Lc 1, 13) e aos pastores (Lc 2, 10). Só a confiança consegue vencer o medo. Os últimos meses foram pródigos em suscitar receios. Primeiro, surgiu o medo do vírus, do contágio; a seguir, veio o receio dos outros, de os contagiar; depois, seguiu-se o temor de frequentar determinados espaços e ultimamente temos encontrado quem viva o pavor da perda do emprego.

Caríssimos, tão necessária como a vacina é a restituição da confiança aos corações atemorizados de cada ser humano. Sejamos todos nós impelidos a tudo colocar nas mãos de Deus e que Ele, em conformidade com o nosso carisma, nos confirme artífices da confiança.

6. O terceiro valor é o respeito pela dignidade humana. Jesus, o Rei dos reis, não nasceu num berço de oiro de um palácio imperial, nem tão-pouco numa estalagem, onde já nem sequer havia lugar, mas numa manjedoura algures nos arredores de Belém (Lc 2, 7). E isso não significou que não houve dignidade ou que os protagonistas, envolvidos nesse divino nascimento, foram, por isso, menos dignos. Aliás, descobrimos que a dignidade não depende das circunstâncias, que são sempre contingentes, logo mutáveis, e são só uma mera construção humana. A dignidade de cada ser humano reside na sua condição intrínseca, que o torna pessoa, ou seja, sujeito de identidade própria, de autonomia e de liberdade assente na força relacional. Por isso, em Belém, a dignidade humana brilhou mais autenticamente por não ter sido ofuscada pelas luzes cintilantes do luxo, das joias ou das pedras preciosas. Também o Portugal deste século XXI brama pela reafirmação do respeito pela dignidade de cada ser humano e da sua vida integral, porque, com pesar o constatamos, a mentalidade niilista ocidental e uma assumida «banalidade do mal» (Hannah Arendt) leva a que cada vez mais se progrida na cultura do «descarte humano», como diz o Papa Francisco, traduzida na desvalorização do ser humano e da sua vida.

Como membros da Igreja temos inscrita, na essência da nossa identidade e vocação, a promoção da dignidade de cada pessoa. Com o olhar fixo na Criança do presépio, continuemos a afirmar a sabedoria de reconhecer, em cada rosto humano, a presença de um irmão ou irmã.

7. O quarto valor que o Natal nos legou é o coração da paz. Como sublinha o Papa Francisco na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2021, «a cultura do cuidado é percurso de paz» e no mistério do Natal todos são chamados a cuidar de alguém: desde logo, Jesus Cristo que veio para cuidar da humanidade; Maria e José que são chamados a cuidar do Menino e da família, logo de todos nós e do mundo. Mas, na profundidade do Mistério da união da divindade com a humanidade, a união hipostática, estabelece-se a harmonia do céu com a terra, enquanto tal Mistério irrompe no mundo humano, tornando-se fonte de toda a comunhão de nós com Deus e de uma verdadeira e evangélica fraternidade global, no sentido de realizar a união entre todo o género humano, mas também entre todos os elementos do mundo criado.

A nossa missão tem a paz como seu princípio e fim. A paz flui como meta de uma caminhada de solidariedade e de amor. Faço votos para que, na graça de Deus, prossigamos o caminho da vida pela estrada do bem-fazer e do fazer-bem que fará de nós arautos de paz.

8. O Natal é, portanto, o acolhimento da graça da salvação que o Redentor do mundo instituiu com a sua divina encarnação no seio virginal de Maria Santíssima e o seu nascimento como homem, mas também o momento favorável para irradiarmos solidariedade, confiança, dignidade e paz. Por isso, Mistério central da fé cristã, no Natal se gera igualmente um arsenal de valores e atitudes que não só combatem a desumanidade, mas que levam sobretudo à transformação do mundo e da humanidade.

Partilho, em jeito de augúrios natalícios, as palavras que o Papa Bento XVI evocou por ocasião do seu 85 aniversário: «Deixai que nós, cada vez mais, abandonemos as obras da obscuridade e empunhemos as armas da luz!»

Um Santo e Feliz Natal, um Ano Novo fonte de esperança.

+ Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

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