Homilia do bispo das Forças Armadas e de Segurança na evocação dos antigos combatentes

1. Em 1 de Janeiro de 1974, no 7.º Dia Mundial da Paz, era entregue, de mão em mão, às portas das Igrejas do Porto, uma simples folha policopiada, com este dizer: “Há 13 anos que Portugal mantém uma guerra na Guiné, em Angola e Moçambique. Com toda uma série de consequências, que nos tocam de perto (…). É a nós que nos é lembrado hoje e para todo este ano: a Paz depende também de ti. O apelo do Papa Paulo VI não deixa nenhuma escapatória”.

Em qualquer instância da vida, a guerra arrasta consigo o clamor da bravura, o protesto contra o pavor, o incontido de sentimentos, as dissonâncias e tensões políticas. Por vezes, e a propósito da Guerra do Ultramar, brada-se à revolta, porque os traidores de ontem, assim chamados, foram depois, pela história, os heróis; também os heróis, expoentes de outras eras, foram mais tarde acoimados de traidores. Há temas que escapam à acalmia.

A Guerra do Ultramar, guerra de ou em África ou guerra Colonial (até o adereço fomenta equívocos e desconfianças) arrastou sempre consigo múltiplas e azedas posições. Como falar de algo, do qual foi imposto não falar em outros tempos? Não tenho dúvidas de que houve combatentes por convicção; também estiveram presentes rebeldes e contrariados que, forjaram com a obediência à lei, centímetro a centímetro, o desabar do Império: foi nas matas de África que o governo de Lisboa caiu.

 

2. São os mortos dessa saga pátria, que aqui nos congregam; são também os vivos, porventura tantos deles, muito mais realizados enquanto protagonistas da submissão à Pátria, do que, mais tarde, por motivo da mesma Pátria, sentirem-se constrangidos pelo esquecimento, solidão e desinteresse.

Bem devemos hoje entoar o sentido da Palavra de Deus tão nossa conhecida: “Dai-nos o pão de cada dia, libertai-nos do mal, reconciliai-nos com os outros e com a História, salvai-nos das ofensas e opressões cometidas” e que a tua Palavra cumpra a Missão da Paz.

 

3. Sempre que celebramos a Eucaristia não escamoteamos acontecimentos nem homenageamos situações. Ao contrário, oramos por cada um e por todos, tenham sido considerados profetas e construtores de novos tempos ou cavaleiros de um novo Apocalipse. A Eucaristia não é a canonização de conflitos, países ou potentados. É comunhão libertadora, contemplação sobre a vida, abertura ao encargo de fazer ressuscitar para a Justiça e para a Paz as intranquilidades, as tensões e as más memórias. Não esquecemos ninguém. Não discriminamos ninguém. Da Palavra de Deus vem o apelo a nunca nos reduzirmos à neutralidade ou à conivência com capítulos de um viver colectivo, que nunca deveriam ter existido. Que os mortos vivam na paz de Deus; que os vivos releiam os factos e as intervenções da humanidade à luz do respeito pela dignidade humana, das lições da liberdade e da democracia, dos valores de um Estado de direito, da excelência de uma cultura de igualdade de oportunidades, que nunca da bancarrota, dos desmandos, da incompetência e da calúnia.

E que a Pátria, que os enviou em missão, e em missão tão espinhosa, faça justiça!

 

4. É fundamental refontalizar a visão do Papa João XXIII e do número 42 da Carta Encíclica “Pacem in Terris”: “ Dado que todos os povos, já conseguiram a sua libertação ou se encontram em vias de a conseguir, num futuro próximo já não haverá povos que dominam os outros, nem povos que obedeçam a potências estranhas”; é inesquecível evocar o testemunho de grandes bispos e missionários como o herói e santo D. Sebastião Soares de Resende, D. Manuel Vieira Pinto, D. Moisés Alves de Pinho, Arcebispo de Luanda, e tantos mais, como de numerosos  padres portugueses e estrangeiros, pacificadores e justos e de capelães militares que, no seu anonimato, apoiaram as populações locais e foram sustentáculos de valores e de razões ao serviço das Forças Armadas. Não é momento aprazado para aprofundar esta História. Não tenho dúvidas de que interesses rapaces motivaram potências estrangeiras e cumplicidades nacionais. Mas, de igual modo, a política portuguesa, face à truculência e à revolta, não teve nem podia ter, no horizonte da ideologia ditatorial, uma solução política, aberta e conforme, que contribuísse para a emancipação dos autóctones, protegendo, ao mesmo tempo, os portugueses presentes, sujeitos ao vilipêndio.

As forças militares portuguesas foram até ao extremo de uma acção interventiva, forçadas a esgotar um tempo em ordem a que um governo buscasse a solução civilizacional.

Tudo isto representou um logro. Na perspectiva da filosofia política, o regime português foi diligente aluno do “resistir”, emblema de não poucas escolas anquilosadas e opositor a sistemas de políticas condignas da descolonização. E, por ironia, embora de consequência se tratasse, os militares maltratados só tiveram que dar ligeiro empurrão para que a aparente robustez governamental oficializasse a sua anunciada despromoção.

Os combatentes foram as grandes vítimas de quem desconhecia o surto da história. Mas cumpriram a missão, e a gosto e a contragosto, protagonizaram um plano.

Pela palavra de um bispo, foi-lhes pedido que restabelecessem a ordem justa onde reinasse a desordem, que defendessem o direito violado, onde vigorasse a violação do direito e realizassem as obras da paz em ordem ao bem comum, a saber: impedir o domínio ditatorial ou totalitário de outras potências; tudo promover para que, de forma ordeira e inteligente, respeitados os portugueses locais, fosse devolvido aos povos o que aos povos pertencia.

É mister honrar quem foi enviado, sobretudo quando, no após, os condicionalismos de debilidade física e psicológica e de situações económico-sociais não alcançaram o respeito da justiça e da gratidão. Este é o problema nacional, herdado da Guerra do Ultramar. Em vez de paixões e de agressividades retóricas de gente que se exalta, bem mais consequente seria lançar mão aos sofredores e injustiçados:

Nunca mais a guerra. Que o sacrifício das vítimas tombadas nos alcance a paz e a concórdia.

E, Senhor, livrai-nos de todo o mal. Dai-nos o pão da justiça e da tranquilidade na ordem.

Ámen.

Lisboa, Mosteiro de Santa Maria de Belém – Jerónimos – 15 de Março de 2011

D. Januário Torgal Mendes Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança

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