Homilia de D. Manuel Linda em São Bento da Porta Aberta

A liturgia da Palavra agora mesmo acabada de escutar é tipicamente baptismal: refere-nos a vida nova da graça de quem é inserido em Cristo pelo Baptismo. De facto, como sabemos, a Quaresma é tempo favorável para uma catequese mais intensa para aqueles que se propõem a recepção do Baptismo na Vigília Pascal. E mesmo que, habitualmente, não tenhamos muitos catecúmenos devido ao hábito de baptizarmos as crianças em pequenas, o espírito da liturgia encaminha para a renovação das promessas baptismais e para a consequente tomada de consciência da nossa condição de baptizados.

 1. Nesta linha, lemos a primeira leitura como expressão da novidade de vida adquirida pelo Baptismo: “Olhai: Vou fazer algo de novo. Não o notais?”. Esta novidade –diz-nos o trecho- passa por um “caminho aberto através da águas”. E o resultado, é “um povo escolhido, um povo formado para o Senhor e que proclamará os Seus louvores”.

O Evangelho, no conhecido caso da mulher adúltera levada à presença de Jesus, fornece-nos alguns dados fundamentais a respeito desta novidade de vida. Ressalto-as sumariamente:

a)      Tomada de consciência de que a vida humana carece de redenção ou de salvação. E de que esta não se encontra nas nossas forças. Não foi nela mesma que aquela mulher encontrou a força para a mudança de vida ou a salvação de que carecia.

b)     Experiência de que não é a sociedade quem redime, pois esta só afunda e, hipocritamente, só condena. Particularmente quando se cometem iguais ou maiores crimes, pois a tendência é de voltarmos os olhares para a maldade dos outros, convencidos que, assim, mais se ressalta a nossa –fingida- bondade. Que o digam aqueles fariseus e doutores da lei acusadores!

c)     Certeza de que só Jesus Cristo salva. Sem espalhafatos. Este “só” é bem acentuado no texto, quando refere que “todos se afastaram e ficou Jesus com a mulher”. Embora a cena acontecesse no lugar mais movimentado da cidade: precisamente na esplanada do templo.

d)     Confronto com a Palavra de Deus reveladora. Por isso se diz que Jesus fala e até escreve, como referência simbólica à única Palavra que desperta as consciências, redime e salva. É palavra diferente da algazarra da multidão ou das comunicações sem profundidade nem ética. É que Jesus é a palavra feita carne, “o Verbo que encarnou e habitou entre nós”.

e)     A conversão de vida e a adesão a um projecto de novidade e bondade: esta reviravolta é que permite a Jesus absolver a mulher, declarar que está ultrapassada a condenação do pecado e lembrar-lhe que a adesão aos valores do Reino de Deus supõe e exige o corte com o passado e, consequentemente, o “não voltar a pecar”.

2. Evidentemente, esta mensagem continua a constituir uma interpelação para o hoje da nossa história. E faz-nos ver que o processo de conversão continua em aberto. Individual e colectivamente. Aliás, com um humanismo enternecedor, S. Paulo, na segunda leitura, falava-nos da sua própria experiência neste campo: “Eu ainda não cheguei à neta nem atingi a perfeição. Mas continuo a correr para ver se a alcanço, uma vez que também fui alcançado por Cristo Jesus”.

Nesta corrida, não vamos sós. Individualmente, desanimaríamos. A comunidade dos que correm para a meta e procuram atingir a perfeição tem um nome: chama-se Igreja.

3. Esta Igreja, particularmente em alguns membros que deveriam dar bom e acabaram por dar mau exemplo, foi, recentemente, arrastada para a praça pública. Tal como a mulher do Evangelho. É verdade que, como no caso dos doutores da lei e dos fariseus, por parte de alguns acusadores nota-se o mesmo gosto de chacota e de chafurdar na lama. Não obstante, o mal é sempre mal. E, nestes casos, absolutamente lamentável. E que nos obrigam à conversão radical para que tais situações confrangedoras nunca mais se repitam.

Não obstante, a Igreja continua como a única comunidade de salvação. Como tal, credível. Assegura-o a fé e compreende-o a inteligência e a racionalidade dos homens e mulheres de boa vontade: na comparação dos que, mesmo com grande esforço, correm para a meta da perfeição, é muito diminuto o número dos que se voltam para trás. Se o considerássemos somente sob o ponto de vista das estatísticas –o que eu não farei- quase se poderia considerar residual e insignificante. Pelo menos é tão diminuto que não pode pôr em causa a condição e o bom-nome da maioria. Quase me apetecia dizer que, por cada grama de maldade que alguns construíram –deixem-me dizê-lo com esta linguagem- os outros introduzem no mundo quilos e quilos –ou até toneladas…- de bem e de bondade. Nos mais diversos sectores que tecem a sociedade humana, na maioria das vezes de forma absolutamente apagada, naquilo que não constitui notícia para quem só relata escândalos, mas que, não obstante, constitui o que mais interessa ao mundo. É um bem não mensurável, mas efectivo: na escuta dos dramas e orientação de vidas; no estímulo da esperança aos desanimados; no incentivo à vivência de uma condição humana chamada a transcender-se continuamente; na pregação dos valores, mormente da misericórdia e da paz; na promoção das obras e estruturas de assistência e solidariedade social; no apelo à partilha com quem mais necessita; na promoção do desenvolvimento integral; na luta contra o materialismo que reduz o humano ao pior da natureza; na criação de uma mentalidade mais universalista ou missionária; na esmola escondida; na promoção da família; nos mundos da cultura e da educação; na atenção profética aos pobres e rejeitados da sociedade, etc., etc. Não o reconhecer seria sinal de má vontade.

4. Como é sabido, S. Bento, em cujo conhecidíssimo santuário nos encontramos, consegui conciliar, magistralmente, a dimensão espiritual da novidade de vida com vínculos e dinâmicas comunitárias tais que o constituíram, nele e nos monges que lhe seguiram o exemplo, pela oração e pelo trabalho, porventura, no mais importante factor para a construção da unidade europeia de que hoje beneficiamos. Por isso foi declarado “Pai da Europa”. É que os grandes são assim: consequentes com o seu Baptismo, à medida que sobem para Deus, ajudam os irmãos em igual escalada.

Ele nos ajude a fazer como ele fez.

D. Manuel Linda,
Bispo auxiliar de Braga

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