Homilia de D. Manuel Clemente na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

Até ao fim

Foto Agência ECCLESIA/PR

Caríssimos

Se ainda procurássemos o verdadeiro porquê desta celebração, creio que não encontraríamos resposta mais cabal do que a ouvida no começo do Evangelho de há pouco: «Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim».

Reparemos que não se trata apenas de amar, mas de amar até ao fim. Dito de outro modo, amar verdadeiramente requer entrega total ao bem dos outros, fazendo da vida uma plena oferta. A vida de Jesus mostra-nos o que tal significa, a sua cruz realizou-o inteiramente e a Eucaristia oferece-o a cada um de nós.

São Paulo assimilou tão plenamente esta verdade que a repetiu uma e outra vez nos seus escritos. Como neste trecho, não hesitando em referir-nos à própria realidade divina, assim mesmo demonstrada: «Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos bem-amados, e procedei com amor, como também Cristo nos amou e se entregou a Deus por nós como oferta e sacrifício de agradável odor» (Ef 5, 1-2). Sim, como dirá o Prefácio desta Missa, «Cristo, nosso Senhor, verdadeiro e eterno sacerdote, oferecendo-se como vítima de salvação, instituiu o sacrifício da nova aliança e mandou que o celebrássemos em seu nome».

Jesus passou deste mundo para o Pai, na circunstância precisa que o Sagrado Tríduo relembra e medita, da traição do discípulo à morte na cruz. Mas de tudo isso, que podia ser apenas uma grande derrota e um tristíssimo desfecho, Jesus fez oferta de si mesmo por nós e por todos, inteiramente entregue às mãos de Deus Pai. Mãos que no-lo devolveram como alimento de vida eterna, essa mesma que preenche e salva a quem verdadeiramente a receba.

A simpatia humana é algo de natural e espontâneo, na nossa humanidade comum. Manifesta-se nas vidas que geram vidas, nos cuidados que se prestam e na atenção ao bem do próximo. Mas também sentimos que não chega, quando falta quem estava, o horizonte se ensombra, ou o mal parece vencer.

Significa isto que os melhores sentimentos e vivências não conseguem atingir quanto prometem e o nosso desejo mais profundo acaba por ficar sem cumprimento, não atingindo o fim que pretendia. As circunstâncias atuais, que afligem tanta gente por esse mundo além e aquém, dão lugar a grandes deceções. Na verdade, com tanto bem que se pratica, tanto contributo da ciência e do engenho humano, tanto sonho e ideal que nos movem, porque havemos de ficar a meio caminho de nós próprios, ou mesmo entre os escombros dos melhores propósitos?

– Que nos resta então, a nós mortais? Os discípulos de Jesus celebram hoje um amor que nos amou até ao fim e que desse modo preencheu de vida divina o que a fraqueza humana extinguiria. E não por fora desta mesma fraqueza, antes sofrendo-a até à morte e morte de cruz. Em tudo foi igual a nós, no que sofreu, mas sempre com Deus Pai e assim vencendo.

Porque nos amou até ao fim do percurso terreno que lhe truncaram de modo tão injusto e tão cruel, nada ficou por acompanhar em cada um, no infindo caminho em si aberto. Por isso celebramos e comungamos a vida que nos deu, na Santíssima Ceia do seu corpo oferecido e do seu sangue derramado.

Sim, caríssimos, se estamos hoje aqui, celebrando a Missa Vespertina da Ceia do Senhor, é unicamente porque Jesus nos amou até ao fim. Se o não tivesse atingido, também não nos alcançaria a nós, humanidade de qualquer tempo e lugar, sempre tão longe do que só com Ele poderá ser. Sabia-o São Paulo, ao resumir a sua vida deste modo: «corro para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3, 12). Esta frase pode bem traduzir o dinamismo eucarístico duma existência cristã propriamente dita, da gratidão à entrega de si mesmo.

Duas consequências maiores daqui se tiram. A primeira é que celebrar verdadeiramente a Eucaristia é acertar a vida no ponto eucarístico a que Cristo chegou e donde nos chama agora e a cada um. É entrar na lógica divina que assim se revelou. Em Jesus Cristo, seu Verbo encarnado, Deus diz-se e comprova-se como vida totalmente oferecida.

Foi este o fim da revelação divina, para a tomarmos nós como finalidade da nossa vida em Deus. Na sua cruz Cristo entregou-se às mãos do Pai, na Eucaristia devolvemo-nos com Ele a Quem nos espera a nós também. Não celebramos muitas Missas, celebramos cada vez melhor a única de Cristo, sacramentalmente reiterada, para que o mesmo propósito se realize até ao fim.

A outra consequência necessária é a que Pedro aprendeu no lava-pés, como há pouco ouvimos, dando-lhe o sentido que aprenderia depois: «Senhor, então não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça». Não se tratava de limpeza exterior e fácil de conseguir. Trata-se da renovação inteira que só em Cristo se alcança. Em Cristo e precisamente no seu amor comprovado “até ao fim”, refazendo-nos com a sua vida entregue, convertendo toda a boa vontade humana na absoluta caridade divina.

Nenhum de nós se abeire da Eucaristia para continuar como está ou se garantir como deseja de si e só para si. Tudo isso seria muito pouco e mesmo ingratidão. A Eucaristia é a entrega total de Cristo pela totalidade que havemos de atingir com Ele, para glória de Deus e bem dos outros. Tudo nela é sacramento e sinal da ressurreição que só desse modo nos chega, pois com Cristo nos oferecemos a Deus e com Cristo nos devolvemos a todos, ampliando a Missa em missão.

A Eucaristia é a memória viva e vivificante da oferta que Jesus nos fez de si mesmo e nunca pode ser menos do que isso, para ser autêntica e salutar. Lembrou-o também São Paulo: «Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha».

Vivemos duma vida entregue, comunguemo-la inteiramente gratos e manifestemo-la em correspondência total. Não fiquemos a meio do caminho que Ele quer percorrer, connosco e em nós, até ao fim!

Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022

D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa

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