Homilia da Peregrinação Nacional do Movimento dos Convívios Fraternos

14 de Setembro de 2003 Leituras: Núm. 21, 4-9: A serpente erguida, sinal de morte e de vida. Sl 77 (78): Não esqueçais as obras do Senhor. Fil. 2, 6-11: Cristo obediente até à morte de Cruz. Jo 3, 13-17: Deus amou de tal modo o mundo que lhe enviou Seu Filho, não para o condenar, mas para o salvar. “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna”. (Jo 3, 16) 1. Amados peregrinos do Santuário de N.ª S.ª de Fátima, neste momento, estamos a celebrar a Eucaristia, acontecimento central da nossa fé, que é memória e actualização da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus para nossa salvação. É estranho e incrível que os cristãos celebrem a morte de um condenado na cruz como acontecimento nuclear de salvação! E que hoje até se celebre uma festa com o título de exaltação do instrumento dessa morte, a cruz, cuja liturgia se sobrepôs à do 24.º domingo do tempo comum! Mas, afinal, que Deus é este que nós adoramos e seguimos, que se deixa morrer numa cruz?! Que força simbólica tem essa cruz, a ponto de tantos a quererem ter nas suas casas, nas ermidas, nas igrejas, nas encruzilhadas dos caminhos, nos cemitérios e muitas pessoas, mesmo não se confessando cristãs, a trazerem ao peito?! 2. Detenhamo-nos, por breves momentos, a reflectir sobre o mistério do sofrimento, da morte na cruz e a nossa fé, que nos leva a acreditar na vida e no poder de Deus expresso no aniquilamento da morte na cruz. Trata-se de interrogações a que não podemos fugir e para as quais não podemos deixar de procurar explicações, para entendermos o significado da vida de Jesus e também da nossa vida cristã. Não podemos fazer de conta que o sofrimento e a morte não existem, que Cristo não precisava de sofrer, que a cruz foi um acidente evitável. Se não compreendemos o significado da paixão e Morte de Jesus, ou, pelo menos, aceitarmos esta manifestação do amor de Deus, também não escutaremos o desafio feito por Jesus: Quem quiser ser meu discípulo negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. 3. Escutemos algumas perspectivas de resposta dadas pela Liturgia da festa que estamos a celebrar. a) Em primeiro lugar, o evangelho de S. João relaciona a vida e morte de Cristo na cruz com a serpente levantada por Moisés no deserto. A mesma serpente que era instrumento de morte tornou-se instrumento de salvação para quem não hesitasse em encará-la. Assim Jesus é entregue aos homens e levantado na crus para sua salvação. O Filho de Deus identifica-se com a humanidade, frágil e pecadora, assume o seu sofrimento e dá perspectivas de vida eterna a quem olhar para o Crucificado e n’Ele acreditar. b) S. Paulo, na carta aos Filipenses, escreve um hino ao desenrolar da vida de Cristo, entendida como dinamismo do amor, que desde o mistério de Deus baixa até ao homem e consigo arrasta toda a criação até à manifestação da glória final, para alegria e salvação de todos os que se deixam amar. 4. Quase dois mil anos depois destes acontecimentos históricos, somos convidados também a olhar para Jesus, para a Sua Paixão e Morte, para Jesus suspenso na Cruz. Somos desafiados a aceitar a Cruz como bendita, salvadora e a cantar-lhe hinos de louvor. Somos interpelados para fazer da lógica da semente, do grão de trigo lançado à terra, que tem de morrer para dar fruto, também a lógica da nossa vida cristã. Viemos até Fátima pedir ao Senhor por intermédio de sua Mãe, Maria, a força para completarmos em nós o que falta à Paixão e Morte de Jesus, para também nós carregarmos a cruz nossos limites e incapacidades, a cruz das vítimas do pecado dos homens, a cruz tantas vezes imposta ao seu semelhante pelos homens de coração duro, egoísta e insensível, sem capacidade para o amor misericordioso, que perdoa e procura construir a paz, a comunhão. 5. Vivemos numa civilização que tem dificuldade em integrar e aceitar o sofrimento e a morte como parte da vida e condição do amor sem condições ou restrições. Tentamos eliminar tudo o que pode fazer sofrer ou lembrar a dor e a morte. Relegamos os deficientes, os doentes, os idosos e os mortos para dentro das paredes dos asilos, dos lares, dos hospitais, das casas mortuárias. Alimentamos a ilusão da vida sem dor e sem cruz. Por isso desanimamos e quase enlouquecemos quando ela nos bate à porta. Estamos cegos pela nossa visão materialista, que não vê para além das fronteiras da matéria perecível. Esperamos tudo da ciência e pouco do Senhor da vida. Já S. Paulo se queixava que muitos repudiavam a Cruz de Cristo, uns como loucura, outros como escândalo. No entanto, afirma o mesmo S. Paulo, sabedoria de Deus e vida de Cristo e dos seus discípulos (1 Cor 1, 23 ss). 6. Estimados peregrinos de Nossa Senhora de Fátima, estão hoje connosco muitos jovens, a maioria ligados ao Movimento dos Convívios Fraternos, lançado na nossa igreja portuguesa há 35 anos por um sacerdote de Avanca, aqui presente, o Pe. António Valente de Matos. Este apóstolo da juventude compreendeu cedo e bem que a Igreja é mistério de comunhão e participação, convocada para a missão de, em Cristo e por Cristo, reconciliar as pessoas com Deus e entre si, tornando-se cada vez mais sinal e testemunha credível do Reino de Deus. Este sacerdote compreendeu também que todos somos chamados a participar nesta missão, que os jovens não podem ser excluídos, antes pelo contrário, que os jovens são as melhores testemunhas de Cristo e dos valores do seu Reino para os outros jovens. Como diz repetidamente o Papa João Paulo II, os jovens são um laboratório da fé, esperança de uma nova aurora, construtores duma nova sociedade. Jesus Cristo, o Papa e eu, unido a ele, contamos com a resposta dada pelo movimento dos convívios fraternos às aspirações profundas dos jovens. 7. Oxalá esta peregrinação a Fátima, neste dia da festa da Exaltação da Santa Cruz, contribua para compreendermos melhor o mistério do amor de Deus expresso no dom da vida na cruz. Sabemos que há dois mil anos só alguns não fugiram diante de Jesus de Nazaré, suspenso na cruz. Sabem quem ficou de pé, junto à cruz, no Calvário? Maria, Mãe de Jesus, onde a lança também atravessou o seu coração, mais um apóstolo de entre doze e algumas mulheres. Foi lá que essa mulher forte nos foi dada também como nossa mãe. Foi ela que nos trouxe aqui, confiando no seu testemunho de mulher santa e corajosa, na sua protecção como nossa mãe. A ela confiamos as cruzes da nossa vida, apresentamos-lhe as intenções do Santo Padre, em missão apostólica na Eslováquia e encomendamos ao seu amor materno os jovens e todos os que nos são queridos e cujos sofrimentos conhecemos e sentimos, para que também nos mantenhamos firmes junto de todos os que sofrem, sobretudo daqueles com quem vivemos, familiares e vizinhos. 8. Mas hoje é domingo, dia da Ressurreição do Senhor, vencedor da morte e do pecado. Isto dá-nos ânimo, coragem e alegria, pois temos a certeza que, unidos a Cristo, não estamos condenados à injustiça, ao sofrimento e à morte sem sentido, mas à plenitude de vida em Deus, à semelhança de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, modelo perfeito da vocação humana. Por isso, sofremos com paciência e alegria as contradições deste mundo e aqui as viemos confiar a Maria, neste Ano do Rosário. Com ela, queremos deixar ecoar nos nossos corações e nos nossos lares as suas palavras: Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a vossa vontade. Com toda a tradição da Igreja, olhando para a imagem que nos recorda as aparições de 1917, aqui em Fátima, com a simplicidade e a confiança dos pastorinhos, rezamos: Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amen! + António Vitalino, Bispo de Beja

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