Guarda: Homilia de D. Manuel Felício na celebração da Paixão do Senhor

Sexta-Feira Santa

Paixão e Morte do Senhor

Celebramos a Paixão e Morte do Senhor.

Diante do Senhor, morto e ressuscitado, contemplamos o mistério da morte que diz respeito a todos os seres humanos e também a realidade do sofrimento que é transversal a todos e não tem justificação fácil.

Olhamos para o mal que faz sofrer, sobretudo tantos inocentes; para os erros cometidos  por todos, mas principalmente pelos que têm especiais responsabilidades na condução da vida comunitá¬ria, em diferentes níveis.

Olhamos para as culpas derivadas dos erros cometidos, umas vezes assumidas por quem os praticou e outras não. E perguntamo-nos naturalmente sobre quem deve pagar pelos prejuízos causados em consequência dos erros praticados.

A situação de guerra que atinge neste momento não só os dois países mais diretamente envolvidos, mas também toda a Europa e o mundo obriga-nos a parar e a considerar a gravidade dos erros e pecados a partir das suas consequências na vida das pessoas e dos povos. E espontaneamente perguntamo-nos sobre quem e como deve pagar as consequências desastrosas desses erros, mesmo sem identificar por inteiro as culpas e os culpados.

Estamos a constatar  realidades que fazem parte da existência diária  dos cidadãos e com consequências desastrosas para a vida das pessoas, das comunidades e da própria natureza

A Paixão e Morte de Cristo projeta luz sobre todas estas realidades e ajuda-nos a encontrar caminhos.

Assim, ao escutarmos a passagem de Isaías sobre a figura simbólica do Servo de Javeh, que antecipa a história do próprio Cristo, nós sentimos a proximidade e a solidariedade de alguém que vive os mesmos dramas que se repetem na história e nos dá indicações sobre como hoje os havemos de viver em forma positiva para nós e para os outros.

Assim, esse alguém, sem ter cometido erros e sem cjulpas,  suporta as nossas enfermidades e toma sobre si as nossas dores. Mais ainda, o castigo devido às nossas faltas, erros e pecados é assumido por ele.

Foi injustamente condenado à morte, por uma sentença iníqua, mas não se revoltou, antes, humilhou-se voluntariamente  e ofereceu a sua vida como sacrifício de expiação. Carrega sobre si as culpas da multidão e intercede junto de Deus pelos pecadores.

Nesta descrição do Profeta, nós estamos a ver representada a pessoa de Jesus, esse Sumo sacerdote de que nos fala a Carta aos Hebreus. Ele, como Sumo Sacerdote, penetrou no céu, sem deixar de se solidarizar com a nossa condição humana.

Carregou os nossos erros, pecados e culpas e respetivos castigos, sem qualquer atitude de revolta.

E o caminho que nos aponta é o de não responder à violência com violência, mas sim o da obediência no sofrimento, o que implica sofrer com todos os que sofrem e carregar com as consequências dos pecados e outros males praticados, mesmo sem culpa própria.

Mas é sobretudo o drama da Paixão e Morte do Senhor, cujo relato acabámos de escutar, na versão do Evangelista S. João, que vem esclarecer as situações difíceis da nossa vida e propor-nos os caminhos que devemos seguir, principalmente quando a dor, o sofrimento injusto ou a própria morte nos  atingem.

Vejamos, então, o que nos diz a Paixão e Morte de Cristo sobre tudo isto.

A Paixão e Morte de Jesus é resultado de uma entrega pessoal, sem limites e livre, que ele faz da sua vida por uma causa superior. Podia ter fugido, enquanto Judas e os soldados que o procuravam prender caíram por terra. Não o fez e seguiu em frente.

Jesus diz-nos, assim, o que é viver; porque viver nunca é guardar a vida só para seu bem individual, mas sim para bem de todos e com a vontade decidida de partilhar as situações difíceis de todos.

Ele suportou a dor indizível da negação de Pedro. Suportou a flagelação, a coroação de espinhos e os maus tratos do Pretório de Pilatos. Não respondeu às acusações injustas e caluniosas dos responsáveis judeus.

Com clarividência e dignidade incontestadas, apresentou-se diante do Sumo sacerdote e depois diante de Pilatos, a cuja sentença injusta se sujeitou. Da boca dele ouviu por três vezes o reconhecimento da sua inocência sem a consequente coragem para o libertar.

E suportou com invulgar serenidade o ódio dos responsáveis judeus que pediam a sua morte e ameaçavam Pilatos, se não atendesse este seu pedido iníquo. Pilatos não teve coragem para cortar a direito e respeitar a verdade e justiça, mas cedeu à pretensão iníqua da multidão manipulada, entregando-o para ser crucificado.

E Jesus, carregando com a cruz, a caminho do Calvário, entrou mesmo na consumação do mandato que recebera do Pai, até às últimas palavras que pronunciou, antes de expirar, dizendo “Tudo está consumado”.

Mas, antes disso, ainda teve força para nos entregar, através do discípulo amado, a sua Mãe para ser a nossa Mãe.

E deixou-nos o seu lado aberto, de onde corre sangue e água, segundo atesta quem foi testemunha direta, o discípulo amado S. João. Este Sangue e esta Água, de facto, representam, por um lado, o conforto da Igreja e do seus sacramentos oferecido a todos; e, por outro, a força que nos impele sempre para vivermos a nossa vida segundo o modelo que Ele é também para todos.

Voltando às realidades muito humanas e transversais a todos de onde partimos e colocando-nos diante do drama da Paixão e Morte de Cristo, sentimos a urgência de enfrentar com responsabilidade os nossos erros e pecados e os dos outros, como  também todas as suas consequências.

As culpas temos de as levar sempre a sério, em todas a situações, principalmente quando geram consequências de sofrimento, sobretudo para os inocentes.

Para bem de todos a culpa não pode nunca morrer solteira, porque as consequências dos erros e males praticados pedem reparação até ao limite do possível. Isto é o que pedimos também aos tribunais, cujas sentenças têm de pretender antes e mais do que castigar, recuperar as pessoas para o caminho do bem.

Finalmente, sabemos que o perdão dos inimigos e a vontade de perdoar sempre e em todas as circunstâncias, como o fez Jesus ao dizer – “Pai perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” – são o único caminho que leva à paz, um bem essencial de que todos precisamos.

A Paixão e a Morte do Senhor são mistério que nunca é demais meditar. É o que nós vamos continuar a fazer durante o silêncio desta Sexta-Feira Santa e também no silêncio do dia de amanhã, Sábado Santo, até à Vigília Pascal.

D. Manuel R. Felício, Bispo da Guarda

 

 

 

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