Geminação entre dioceses portuguesa e angolana começa a dar frutos

A 2 de Agosto de 2006, o grupo missionário “Ondjoyetu” da diocese de Leiria-Fátima, parte para Novo Redondo-Sumbe, em Angola. Três leigas e dois padres dão o pontapé de saída a uma geminação, a primeira em Portugal, entre duas dioceses. Vão “começar do zero”, numa caminhada com o povo do Gungo Os números não transmitem a riqueza da experiência em missão: 1189 dias no Gungo deixaram no coração e na vida do padre Vítor Mira, 39 anos, sacerdote “Fidei donum”, um bichinho. A simpatia pelos missionários entra-lhe no sangue e no coração, logo aos cinco anos. Passa pelo tempo de seminário e leva-o a partir em missão, jovem sacerdote, entre 1993 e 1996. Coordenou, ao longo dos últimos seis anos, o projecto ASA – Acção Solidária com Angola, que envia, em Agosto, uma equipa de três leigos e dois padres para o Gungo. Pároco de Regueira de Pontes, é um deles. Conhece o povo, acompanha, durante seis meses, a equipa que vai fazer nascer uma missão. “Eu gostaria de ir para ficar, mas sou mais necessário cá. Para acompanhar a preparação das pessoas e a animação da diocese, para continuar a apoiar este projecto”. O entusiasmo com que fala dos três anos e meio, 1189 dias, em que esteve em missão mostram o amor que foi ganhando ao povo do Gungo. “Foi um tempo muito difícil, em tempo de guerra, em que não ia lá ninguém”. O povo retribui. Além de se lembrarem que esteve com eles, agora “até mandaram uma mensagem a dizer que estão a tapar os buracos da picada”. Seis horas e meia para fazer trinta quilómetros, andar dez quilómetros por hora nas picadas, altera a noção das dificuldades. Perante a situação de pobreza e fome, no tempo difícil, quando regressa à sua diocese em tempo de férias, Vítor Mira procura ajuda para aquela gente. Oito contentores, resultado da solidariedade. Tem-se repetido, anualmente, o envio de um contentor, com os voluntários que partem em missão. Em missão, releia-se. “É um projecto que foi ganhando força pela sua perseverança. No início, alguns julgavam que era uma espécie de turismo religioso: ‘Vão a Angola ver, fazer umas coisitas, passear e voltam. Já fui missionário’. Com a proposta de geminação as pessoas vêem que é um trabalho sério”. “É preciso começar do zero” Em 1999, Vítor Mira desafia os seminaristas do Seminário Maior de Coimbra. O seminarista, agora padre com 30 anos, David Nogueira, deixa-se contagiar por este entusiasmo. Parte em 2000, com o primeiro grupo, volta em 2005 e, agora, parte de novo. “Três anos para a causa missionária vai parecer um relâmpago”, diz em tom pausado. Ciente que, por um lado, “é muito tempo, longe da família e sem as comodidades a que nos habituámos; mas, para o trabalho que há lá a fazer, três anos é uma gota de água das pequenas. Por vezes, sinto a tentação de renovar por mais três. É preciso começar do zero”. David Nogueira é o coordenador desta equipa missionária, no Gungo, cuja primeira tarefa será construir uma casa e recuperar a casa da Donga, uma missão dos anos 70. Receios? “Serei capaz? Vou liderar uma equipa, partimos todos do zero, eu inclusive. O maior receio é tudo ser novo, o tempo que as coisas vão demorar a descobrir”. Outras certezas: “A primeira coisa que queremos fazer no trabalho missionário é realizar um “ondjango”, sentar-nos com os responsáveis locais, tentar perceber a realidade de cada comunidade antes de começar a trabalhar. A grande prioridade é ajudar as pessoas a descobrir condições de desenvolvimento”. Quase seis anos na paróquia dos Marrazes, descobre nela um misto de alegria e tristeza pela sua partida. Perguntam “se é de vontade ou, por obrigação, que vou”. Outros estão ntusiasmados, “sentem que eu sou preciso junto deles, mas também sou preciso no Gungo”, confessa. Daqui a um ou dois anos, quando as leigas regressarem, o padre David está confiante que outras boas vontades, de outros leigos, aparecerão a substituir: ”Pelo interesse manifestado por tantas pessoas na diocese, pela confiança que tenho neste projecto e na consciência de que Deus está nele desde o início”. Coragem no rappel Sónia Cruz, 28 anos, analista, sorriso fácil. Os olhos fervilham pela missão; o coração também. Decidiu dedicar dois anos da sua vida à missão. “É como que um intervalo que quero me s mo fazer. Quero ir e estar lá”. Até parece fácil. Uma atitude corajosa? “Não consigo perceber o que é essa coragem. Sinto que é uma coisa tão natural”, diz com simplicidade. “Coragem era lançar-me a fazer rappel”, defende. Deixa um emprego estável, a vida organizada, para “estar com as pessoas, poder dar. O sorriso delas, a amizade, a compreensão, aceitarem-nos e aceitarem a nossa ajuda: isso é a minha paga, o meu ordenado”. Em 2003, entrou para o grupo. Queria partir por um período maior que os dois meses. Esperou que esta geminação se efectuasse. Sentiu, durante a caminhada, que devia partilhar “esse amor que eu sinto que Deus tem por mim. Se eu mereci tê-lo, acho que mais pessoas o merecem”. Daqui a dois anos, quando voltar à paróquia de origem, Marrazes, não sabe o que a espera. Sabe que não vai ser fácil. “Acredito que alguém me há-de ajudar e alguma coisa se há-de encaminhar”. “É certo que elas se responsabilizam pelo risco de irem, tudo o que isso envolve”, afirma o coordenador do projecto ASA. Mas, isso não significa um cortar de relações. “O pós-missão é muito importante e nós, às vezes, pensamos que a missão é ir, estar e vir. E acabou. Em função da missão queremos que estas pessoas continuem a ser apoiadas, acompanhadas, e, de certa forma, rentabilizar a experiência que elas lá realizaram”. Quanto à substituição do sacerdote, depois de três anos, “temos a esperança que, quando o padre David estiver para regressar, um dos que já lá foram tome o lugar dele, para receber o testemunho e continue a missão. A geminação é por dez anos e temos esperança que, pelo menos com padres diocesanos, consigamos manter a missão”, salienta o coordenador do projecto ASA, Vítor Mira. De regresso a Gungo “O entusiasmo das minhas companheiras é maior que o meu. Sinto-me mais tranquila”. Catarina Bagagem 26 anos, educadora de infância, da Batalha, regressa à missão, onde já esteve em 2003, dois meses. Agora por um ano. “Este desejo de partir para Angola já é de há muitos anos. Quando conheci o grupo, lembro-me de sentir que podia, finalmente, concretizar este chamamento, esta luzinha que sempre tive dentro de mim”. Decisão difícil, não para a família que já está habituada a que participe em projectos de voluntariado, nas férias. “Neste momento o factor trabalho, o namorado e outros factores levam-me a ir só por um ano. Por mim estaria lá mais tempo”. Sabe que às colegas de missão vai custar o “choque cultural”. Porque “somos nós que nos temos que moldar à cultura deles e não eles à nossa. Nunca estamos preparados para este cruzar de culturas”. E acrescenta: “Chegar lá, ver, viver, é diferente. É muito diferente”. Na memória, guarda a “cor” do povo que “veste exterior e interiormente”. Ou seja “a alegria com que vivem. Eles têm um problema; mas há mil e uma coisas boas para festejar”. Penetrada por essa cor, regressará em 2007. O que preocupa mais nem é o regresso. “Será que eu não quererei ficar lá mais um ano?”. Espontânea e disponível Conheceu o padre Vítor Mira num encontro da Fundação Evangelização e Culturas (FEC), que prepara voluntários para partirem em missão. Disse-lhe que queria partir. Vera Pereira, 25 anos, professora de ciências, resposta rápida e lágrima fácil. Vai por um ano. Nunca teve uma experiência missionária. O entusiasmo é grande. “Se eu sentir que me chamam a permanecer mais um ano, estou disponível. Se achar que a minha missão é cá, regresso”. Esta confiança leva-a a partir, a querer caminhar com o povo, à velocidade deles. Ao longo desta caminhada de preparação foi ganhando a “consciência” do “amor que Deus tem por nós”. Nesse espírito quer “pôr a funcionar a missão do Gungo; é para isso que eu vou”. “Vou passar para outro referencial, para o nível da alfabetização, algo que nunca fiz”, comenta a propósito de leccionar no Gungo. “O que me vai fazer mais diferença é o ‘stress’, esta pressa, viver a correr. Ao chegar lá vou entrar em choque”, comenta a professora de Ciências. Leiria-Fátima mais missionária Primeiro vão construir a casa. Simples, sem as comodidades da água canalizada ou Internet. As vigas, a telha, os sanitários vão no contentor que chegará com o grupo, a Angola. Para isso têm recolhido fundos; o peditório de todas as eucaristias a 11 de Junho, na diocese; o concerto de Mafalda Veiga, em Fátima, e pedidos de colaboração a empresas da região, bem como o grupo dos “Mil e tal amigos”. Até agora, com a graça de Deus, “o dinheiro nunca foi problema. Nunca sobrou, nunca faltou. Temos procurado gerir bem os dinheiros dos apoios que temos”. Mas se um dia for necessário, “é uma geminação, num momento de dificuldade é evidente que a diocese terá que dar o seu apoio”, confessa serenamente Vítor Mira. A geminação é um marco inédito na vida da Igreja portuguesa. “Não vamos esperar que toda a gente se sinta missionária. Haverá sempre pessoas contra. É um carisma que está a nascer na diocese que não nos deve levar a descuidar as outras áreas”. Este projecto pode trazer mudanças: “A nossa diocese pode ganhar, mesmo que não esteja à espera de nada. É uma certa influência na mudança de mentalidade. É difundir cada vez mais esta consciência missionária”, sublinha o padre David. A diocese é missionária, mas “está um bocadinho esmorecida, fruto das mudanças sociais, dos modelos de família que são diferentes, que não proporcionam que se vá falando muito da missão, que as pessoas entreguem a sua vida para a missão”, completa. A diocese assume o papel da animação missionária, até agora muito relegado para os institutos missionários. “O fortalecimento da animação missionária da própria diocese não significa de maneira nenhuma fechar-se aos institutos, mas vai haver uma maior colaboração com os diversos carismas. Com uma coordenação a nível diocesano”, conclui Vítor Mira. Dez anos de mútua colaboração A geminação entre as dioceses de Leiria-Fátima, Portugal, e a de Novo Redondo – Sumbe, Angola, tem como objectivo a aproximação das duas dioceses, que se consideram irmãs em ordem a viverem juntas a Missão universal num espírito de comunhão fraterna. A geminação deve levar a um conhecimento mútuo, a uma ligação espiritual; cada uma deverá rezar de forma especial pela outra, no primeiro domingo de cada mês; a um espírito de partilha mútua de bens materiais e experiências humanas e à partilha de experiências eclesiais. Esta geminação passa também pelo intercâmbio e presença de padres, religiosos e leigos de cada uma das dioceses na outra. A geminação entre as duas dioceses é feita por um período de dez anos, após o qual poderá ser renovado por período idêntico ou diferente, a definir em momento próprio. A presente geminação abre também outros campos de colaboração entre as duas dioceses, cuja concretização dependerá das necessidades da diocese de Novo Redondo – Sumbe e da disponibilidade de voluntários da diocese de Leiria-Fátima. São as seguintes as áreas de possível colaboração: Pastoral: evangelização, catequese, formação bíblica e espiritual; Formação profissional: agricultura, construção civil, mecânica e outras consideradas oportunas; Ensino: seminário médio do Sumbe, Icra e Escola de Catequistas e ainda em seminários de formação em economia, gestão, informática, saúde e comunicação social. Asas para Angola Chama-se “Ondjoyetu”, que no dialecto africano umbundo significa “A nossa casa”. O grupo missionário da diocese de Leiria-Fátima foi fundado em 1999. O objectivo é realizar acção missionária numa diocese fora de Portugal. Em Fevereiro de 2000, o bispo da diocese de Novo Redondo-Sumbe, Benedito Roberto, participa numa das reuniões deste grupo, em Regueira de Pontes – diocese de Leiria-Fátima e manifestou o desejo que o mesmo realizasse a sua missão, de dois meses, na sua diocese. De 25 de Julho a 25 de Setembro de 2000, realizou-se a primeira edição do “Projecto ASA – Acção Solidária com Angola”. Todos os anos, tem partido um grupo de voluntários de Leiria-Fátima para Novo Redondo, colaborando nas áreas da saúde, educação, promoção feminina, formação profissional, animação juvenil, animação pastoral, entre outras. Ao longo das seis edições, deslocaram-se a Angola 25 pessoas, em missão de voluntariado. O grupo possui quase duas centenas de associados, divididos por três níveis de participação. Os cativos são quatro dezenas, e participam mais activamente nas reuniões e nas actividades. Os colaboradores são pessoas que colaboram pontualmente, quando têm disponibilidade. Serão 30. A novidade é o grupo “Mil e tal amigos”, recentemente criado para apoiar a presença da equipa no Gungo. Trata-se de pessoas que apoiam monetariamente com um euro por mês, 12 por ano. Recebem o infomail do Ondjoyetu, com as notícias do grupo e da missão. Actualmente são 90 e alguns deles fizeram parte do grupo, há anos. A casa O Gungo é uma comuna com 2.100 quilómetros quadrados e que conta com cerca de 30 mil habitantes. É uma região montanhosa que foi muito afectada pela guerra. A população tenta, aos poucos, regressar à normalidade da sua vida no meio de grandes dificuldades. Está muito isolada e falta quem a acompanhe em ordem à resolução dos seus problemas básicos. Os grupos têm ido a Gunfo desde 2003 com regularidade e têm desenvolvido a sua acção junto desta comunidade. FÁTIMA MISSIONÁRIA – Edição LII | Agosto/Setembro de 2006

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top