Funchal: Homilia de D. Nuno Brás na Sexta-Feira da Paixão do Senhor

SEXTA-FEIRA SANTA

Celebração da Paixão do Senhor

Sé do Funchal, 15 de abril de 2022

“Um dos soldados trespassou-Lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água” (Jo 19,34)

A medicina forense dos nossos dias, depois de analisar as narrações da Paixão de Jesus, conseguiu determinar o porquê da presença da água e do sangue que saíram do lado aberto de Jesus quando foi perfurado pela lança do soldado: a água e o sangue são a consequência dos tormentos da Paixão, das torturas sofridas por Jesus antes de ter sido crucificado.

Mas, ao contrário dos outros condenados, a Jesus é perfurado o lado. Ao ler esta passagem do evangelho, os cristãos de todos os tempos – em particular os autores espirituais e aqueles que estudam a Sagrada Escritura – procuraram aprofundar o significado deste acontecimento. E encontraram um paralelo entre esta passagem do evangelho de S. João e uma outra passagem da Bíblia: aquela narração poética do livro do Génesis em que, para mostrar a igualdade de natureza entre o homem e a mulher, o autor apresenta Deus que faz adormecer Adão para lhe retirar uma costela, e com ela moldar Eva, a mulher: “É osso de meus ossos, carne de minha carne”, exclama Adão.

Em várias passagens das suas cartas, São Paulo refere-se a Cristo como “o novo Adão”. Quer dizer: assim como, ao falar de Adão, o Antigo Testamento se refere àquele que deu origem a todo o género humano (não estamos aqui, obviamente, a dirimir questões científicas), também Cristo dá origem a uma nova humanidade, dá origem à Igreja. Ele é o primeiro de um novo modo de existir, aquele em quem somos “filhos de Deus no Filho de Deus”.

Por isso, os autores cristãos dos primeiros tempos, unindo estes vários elementos, propuseram uma leitura daquele momento da Paixão de modo a entendermos a origem e a realidade da Igreja: quando do lado aberto de Cristo brotam água e sangue, é então que surge a Igreja, o novo povo, a nova humanidade – a Igreja surge surge da água do Baptismo mas é constantemente alimentada pelo sangue de Cristo, na Eucaristia. E, por isso, o modo de a Igreja ser, viver, aparecer ao mundo é moldado pela cruz do Senhor.

Vejamos, por exemplo, Santo Agostinho, que dizia, comentando esta passagem de S. João: “O evangelista usou um verbo significativo. Não disse: atingiu, feriu o seu lado, ou algo de semelhante. Mas disse: ‘abriu’, para indicar que no lado de Cristo foi como que aberta a porta da vida, donde fluíram os sacramentos da Igreja, sem os quais não se entra naquela que é a vida verdadeira. Aquele sangue foi derramado pela remissão dos pecados; aquela água tempera o cálice da salvação e é ao mesmo tempo bebida e lavacro. […] Para anunciar este mistério, a primeira mulher foi formada do lado do homem que dormia (cf. Gn 2,22), e foi chamada vida e mãe dos viventes (cf. Gn 3,20). Sem dúvida, era o anúncio de um grande bem, antes do grande mal da prevaricação. Agora [Cristo] o segundo Adão, inclinando a cabeça, adormeceu sobre a cruz, para que assim, com o sangue e a água que brotaram do seu lado, fosse formada a sua esposa. Ó morte, pela qual os mortos retomam a vida! Que existe de mais puro que este sangue? Que existe de mais salutar que esta ferida?” (Comm. In Joh. 120,2).

Devemos, pois, reconhecer que Igreja não apenas teve o seu primeiro momento na cruz de Jesus Cristo, mas também que ela se deve constantemente deixar formar, moldar em todos os tempos, por esta mesma cruz, presente no Baptismo e na Eucaristia. A Igreja, devemos dizer, tem a forma da cruz.

Para significar isso mesmo, os nossos antepassados (como sucede com esta nossa catedral), deram às igrejas uma forma de cruz. Assim, todos devemos constantemente recordar que a nossa vida de cristãos e de comunidade cristã tem a forma da cruz.

Sim. Como Jesus crucificado, também a Igreja há-de procurar fazer a vontade de Deus e não a dos homens. Estes gostariam que a Igreja seguisse as ideias da moda e dos bem-pensantes; que desse mais importância aos poderosos e à sua vontade; que admirasse os famosos e justificasse o seu modo de vida. Mas a Igreja sabe que nasceu da cruz: e, por isso, Deus há-de ter nela o primeiro lugar. É a vontade de Deus que a Igreja há-de procurar conhecer em cada momento, e não a vontade dos homens. Se Jesus tivesse obedecido ao mundo, nunca teria sofrido a morte de cruz. Mas nunca nos teria salvo.

Como Jesus crucificado, a Igreja há-de pois, estar firme na terra – mas como sinal erguido em cimo de um monte, para que todos vejam o Senhor, crucificado por amor. Da terra, ela há-de erguer-se constantemente para o Céu, mostrando o caminho e o destino dos homens.

Como Jesus crucificado, a Igreja há-de ter, constantemente, os braços abertos. Indefesa e disponível, a Igreja há-de ser capaz de acolher a todos, de modo que todos se sintam em casa e sejam interpelados pelo amor de Deus manifestado plenamente na cruz.

A forma da cruz. Saída do lado aberto do crucificado, a Igreja há-de sempre ter consciência de ser, toda, do seu esposo celeste – pois que Ele não hesitou em entregar-lhe tudo quanto tinha, todo o seu ser, todo o seu amor.

Saída do lado aberto do crucificado, a Igreja há-de ser sempre toda para Deus, e toda, de braços sempre abertos para acolher em seu nome esta humanidade tantas vezes perdida, desesperada, e, tantas vezes na violência e na guerra, à procura de uma qualquer solução que apenas poderá ser encontrada em Jesus crucificado.

Saída do lado aberto do Crucificado, a Igreja há-de sempre anunciar que apenas Deus é o Senhor, e que só Ele é a vida dos homens.

Nesta tarde de Sexta-feira Santa, peçamos ao Senhor, a graça de, cada um de nós e todos, assumirmos, na nossa vida, cada vez mais, a forma da cruz – da cruz salvadora, aquela em que o Filho de Deus morreu para nos dar a vida.

 

  1. Nuno Brás, Bispo do Funchal

 

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