Funchal: Homilia de D. Nuno Brás na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

Foto Sé do Funchal

MISSA VESPERTINA DA CEIA DO SENHOR

Sé do Funchal, 28 de março de 2024

1. O memorial orante da saída do Egipto

Ontem como hoje, a Ceia Pascal judaica estava bem longe de ser uma simples refeição de convívio familiar: era, no tempo de Jesus (e é ainda hoje para cada família judaica que a celebra), toda ela, uma verdadeira acção sagrada, em que o Pai de família exerce uma função quase sacerdotal: a de, com os ensinamentos da Escritura e da Tradição judaica, revelar como a Mão de Jhwhcontinua presente, a conduzir o seu povo. 

Não se trata já, é certo, de fazer fisicamente sair o povo do Egito ou de o conduzir por meio do deserto para o introduzir de novo na Terra Prometida. Mas trata-se de, hoje, fazer viver o mesmo dinamismo de libertação dos deuses que nos tornam cativos; de levar a percorrer o deserto da própria existência; de oferecer a graça da comunhão com Deus, libertador, redentor, criador.

Na Ceia pascal, tudo é vivido com uma dimensão sagrada, orante: e, porque se trata do agir de Deus na história, cada elemento, cada gesto, cada palavra pronunciada hoje torna presente a acção divina de então, que continua a fortalecer a fé, a libertar. Os ritos, todos codificados e previstos, ajudam cada hebreu a viver esta dimensão sagrada. Mas a consciência da Presença de Deus permite que todos ultrapassem o mero tradicionalismo ritual. Trata-se antes de acolher a presença viva, nova e renovadora de Deus.

2. A novidade da Última Ceia

Os evangelhos sinópticos têm o cuidado de mostrar como Jesus celebrou a sua Última Ceia em ambiente Pascal. Contudo, mostram igualmente como o próprio Jesus deu à Última refeição com os seus um novo conteúdo. Não lhe bastou repetir o memorial orante da saída do Egito e o acolhimento da salvação de Deus. Indo mais além, Jesus antecipou a sua Páscoa de morte, sepultura e ressurreição, concentrando-a, sintetizando-a no sacramento da Eucaristia, e permitindo que os seus, ao longo dos séculos e em qualquer lugar do universo, a pudessem celebrar, tornando-se desse modo presentes aos acontecimentos da salvação, aos eventos da nova e eterna Aliança. 

Pelos relatos que nos chegaram, somos capazes de perceber as raízes judaicas da Última Ceia. Mas, ao mesmo tempo, somos conduzidos à realidade definitiva de que a Páscoa judaica era apenas imagem: a Eucaristia, a presença da morte e ressurreição de Jesus, em cada tempo e lugar.

Por isso, deixou de fazer sentido falar do cordeiro, uma vez que está presente o novo e verdadeiro Cordeiro Pascal. Deixaram de fazer sentido as diferentes taças de vinho, porque todas elas se encontram e são ultrapassadas no cálice do Sangue do Senhor. Deixaram de ser necessárias as ervas amargas, porque a amargura que elas representavam se resume no sofrimento aceite e vivido por Jesus na cruz.

A novidade das palavras e dos gestos de Jesus oferecem agora um novo sentido aos ritos e às palavras da velha refeição pascal: tudo nos passa a falar do mistério da Cruz redentora, conteúdo definitivo da celebração da Eucaristia.

3. A novidade de cada Eucaristia

A nós, cristãos, não nos basta, por isso, comer uma refeição em memória de Jesus, como a que poderia ser celebrada por uma família cristã na sua própria casa; nem sequer de a celebrar num qualquer espaço mais alargado, dada a realidade maior das comunidades cristãs. 

É verdade que, tal como sucedeu na Última Ceia, vivemos ainda com alguns sinais que nos ajudam a recordar o que era celebrado na Antiga Aliança (é uma refeição, celebrada à volta da mesa, com pão ázimo e cálice de vinho). Mas tudo isso o recebemos transformado na celebração da Eucaristia, verdadeira e real presença de Jesus morto e ressuscitado por nós.

Todas estas realidades nos exigem a todos que participemos com uma atitude verdadeiramente orante em cada celebração eucarística. A Eucaristia não é um teatro, não é um espectáculo, não é uma refeição de família. É a celebração da morte e da ressurreição do Senhor, da qual todos participamos e a qual todos vivemos, transformando e unindo o nosso coração e a nossa vida às palavras proferidas e aos gestos realizados; deixando que o serviço que Jesus realiza para nós e por nós se torne o fundamento e a forma de toda a nossa vida e de todo o nosso serviço aos irmãos e ao mundo. 

Na Antiga Aliança, toda a história e toda a vida de Israel adquiriam sentido e eram lidas a partir da libertação do Egito. Na Nova Aliança, inaugurada na morte e ressurreição do Senhor, na vida do novo povo de Deus (de que Israel era figura), uma nova realidade nos oferece o verdadeiro sentido do banquete eucarístico e de toda a nossa existência cristã: Jesus que entrega a sua vida ao Pai e a toda a humanidade, de forma a permitir aos que nele acreditam, que recebam a vida em abundância, a Vida Eterna, a vida de Deus. Somos Eucaristia continuada em vida.

A Eucaristia é pois o grande impulso da caridade que, partindo da morte e ressurreição do Senhor, anima também a vida do cristão: caridade com os irmãos na fé, exigindo verdadeira fraternidade e comunhão; caridade com todos, em particular para com os que sofrem — Amor de Deus hoje, distribuído sem medida, até aos confins do mundo; ponto fixo que eleva o mundo inteiro do tempo presente até Deus; Páscoa da passagem de Deus por cada vida humana, por nós, em cada dia, que apenas a oração é capaz de descobrir no seu verdadeiro significado, de acolher com todas as suas exigências, de nos ajudar a retirar dela todas as suas consequências existenciais.

Os discípulos — que, certamente, já se tinham apercebido como seria dramáticaaquela Ceia —, foram surpreendidos pela Ceia da Nova Aliança, e conduzidos por Jesus dali até à cruz, da cruz à sepultura, e desta à surpresa do túmulo vazio, ao encontro com o Ressuscitado e ao envio do Espírito Santo.

Cada Eucaristia que celebramos é, na realidade, esse mesmo vértice pascal que nos é dado viver. Em atitude orante, acolhamos Deus que passa por nós; acompanhemos o Senhor Jesus à Sua Paixão; com Ele, vivamos o silêncio do Sábado; e deixemo-nos surpreender pela Boa Notícia da ressurreição. Na celebração da Eucaristia, o Senhor não apenas nos lava os pés numa atitude extrema de serviço, mas nos purifica verdadeiramente para podermos tomar parte com Ele na Sua nova e definitiva Páscoa.

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Agência ECCLESIA

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