Funchal: Homilia de D. Nuno Brás na Missa Crismal

Àquele que nos ama e nos libertou, a glória e o poder” (Ap 1,5-6)

Foto: Agência ECCLESIA/PR

A palavra de Deus que acabámos de escutar colocava diante do nosso coração a figura do Cristo, do Ungido. Escutávamos como Jesus, anunciado pelo Profeta, proclamou, na sinagoga de Nazaré, ser Ele o pleno cumprimento da profecia. Na IIª Leitura, do Livro do Apocalipse, éramos convidados a contemplar esta plenitude, da qual já hoje nos é dado participar. Escutávamos, com efeito, o belíssimo “diálogo”, próprio da liturgia celeste, entre o Esposo redentor, “Príncipe dos reis da Terra”, e a Igreja, sua esposa redimida, “reino de sacerdotes para Deus”.

São Leão Magno diz-nos que não necessitamos de aguardar o momento do nosso encontro definitivo com o Senhor para viver esse diálogo: a liturgia da Igreja oferece-nos já, enquanto ainda vivemos na terra, a graça de saborear os bens do Céu, o encontro de amor entre o Esposo e a Esposa. E nós, sacerdotes, vivemos a graça de ser através de nós e do nosso ministério que a todos os cristãos se torna possível viver esse encontro.

Tem, por isso, razão o povo de Deus quando olha para nós como “aqueles que celebram a Eucaristia”. Mais que qualquer outra realidade ou acção, a presidência da Eucaristia — a presidência da oração de toda a Igreja, que, através de nós, se dirige a Cristo — dá forma ao nosso ministério e a todo o nosso ser. Somos, por vocação e por missão, de entre o povo de Deus, os orantes e os mestres da oração. E tal realidade não pode deixar de englobar a totalidade da nossa vida e de lhe dar forma e conteúdo.

 

Sim, somos os “orantes”. Somos aqueles que, como presença de Jesus e em seu nome, presidem à oração da comunidade — daquela comunidade reunida diante de nós e que encontra nas palavras que pronunciamos a expressão mais adequada da sua fé (que é a fé de toda a Igreja), sempre unida àquela outra comunidade que é a Igreja celeste.

Nós, pobres e frágeis pecadores, somos aqueles orantes que tornam audível, visível, a oração eclesial, já aqui na terra — mas uma oração que ecoa no Céu, junto de Deus. Somos a voz e a presença de Jesus, o Orante, Pontífice entre Deus e os homens. A nossa oração — toda a nossa vida transformada em oração e por ela modelada — assume, portanto e em primeiro lugar, a forma da liturgia, os seus ritmos, as suas expressões, a sua espiritualidade.

Somos convidados a mostrar que a liturgia é oração — nossa e de todo o povo. Oração que, por meio dos nossos lábios e do nosso coração, o Senhor Jesus eleva até ao Pai, num constante hino de louvor. Para isso, não podemos, também nós, deixar de viver cada momento da liturgia como oração, e de ajudar os nossos fiéis a fazê-lo — que o mesmo é dizer: a encontrar Jesus na liturgia (sobretudo na Eucaristia), a dialogar com Ele, a escutá-lo.

 

Não podemos, por tudo isto, deixar de ser homens de oração também pessoal. Di-lo claramente o Diretório para a Vida e Ministério dos Presbíteros: nós, sacerdotes, “necessitamos de entrar numa particular e profunda sintonia com Cristo, o Bom Pastor” (n. 49), através de uma autêntica vida espiritual que encontra na liturgia e na oração pessoal dois dos seus alicerces essenciais (n. 50).

Tal como os Apóstolos depois do Pentecostes (Act 6,2: “Não é bem que deixemos a oração e a pregação para servir às mesas”), não podemos, também nós, deixar de tomar consciência de que a oração é a nossa primeira prioridade (tal como afirma o Papa Francisco), a nossa primeira tarefa. “Estar com o Senhor”: eis a nossa primeira missão. Só escutando a voz que chama e envia, poderemos falar e agir em seu nome.

Como escreveu o monge italiano Enzo Bianchi, dirigindo-se aos sacerdotes: “Apenas se existe este fundamento de estar com o Senhor, da comunhão com Ele, é possível estar no meio dos outros como sinal e voz da presença do próprio Senhor” (729)[1]. E logo acrescenta: “A oração é decisiva porque é a outra face da medalha da fé: a oração nasce da fé e a ela regressa” (730). Ou, dito de outro modo: “Rezar é um acto de fé, não a procura de um estado de alma” (732).

A oração faz-nos dar ordem ao tempo. À primeira vista, parece que a oração pode esperar, que pode ficar para mais tarde. Mas todos já experimentámos que, quando a nossa jornada começa com um momento de intimidade com o Senhor, todo o nosso dia ganha uma nova ordem e uma outra, real, eficácia.

 

Que oração deve ser a nossa? Associados de modo sacramental a Cristo sacerdote, estamos diante da comunidade em nome de Deus, e estamos diante de Deus em nome da comunidade.

Por isso, a nossa oração é, em primeiro lugar (e antes de tudo o mais), um estar diante de Deus. Adorá-Lo; deixar que Ele nos ilumine; que ilumine todo o nosso ser. A nossa oração há-de começar por ser uma adoração do único Deus, vivo e verdadeiro. Assim, Deus oferece unidade à nossa vida, que tantas vezes nos parece cair na dispersão. Colocando-nos na presença do Pai, derramamos junto dele o nosso coração (1Sam 1,35) e deixamos que tudo o que vivemos e fazemos seja por Ele iluminado. É Ele que nos dá a força e a ousadia de falar; é Ele que nos dá a coragem da dedicação total ao seu serviço e ao serviço do seu povo.

Mas, como discípulos, escutamos também o Senhor — Ele que nos dá a graça de “escutar como escutam os discípulos” (Is 50,4). A nossa oração não pode, portanto, deixar de assumir a atitude de quem escuta e procura discernir a vontade divina. Assim, ela vai criando em nós um coração que sabe escutar a Deus e ao mundo, um coração para o qual escutar não é uma tarefa impossível ou inútil, mas a atitude normal, habitual, de um presbítero: “Apenas aquele que escuta — afirma ainda Enzo Bianchi — pode entrar em comunhão com Aquele que fala” (735).

Logo depois, a nossa oração é, também, marcada pela intercessão. A oração do Padre é uma oração que torna Deus presente, ali onde Ele é esquecido, marginalizado: é uma “oração que intercede por Deus”, procurando que Ele assuma o lugar que Lhe é devido na vida de todos e da sociedade (dito de outro modo: é uma intercessão por quantos não crêem ou não dão a Deus o seu devido lugar), para, logo depois, ser oração que apresenta a Deus as necessidades de todos, numa compreensão evangélica do outro. São alegrias e sofrimentos, esperanças e acontecimentos concretos, não apenas nossos mas (também e sobretudo) de quantos nos estão confiados — e de toda a Igreja, e do mundo inteiro. É, por isso, uma oração que nos oferece o olhar misericordioso, católico, do Pai.

 

Somos, finalmente, os mestres da oração. Não se trata tanto de ensinar técnicas, procedimentos. Mas trata-se de ajudar a rezar. O povo de Deus não necessita de professores de oração, que verifiquem se ela é ou não realizada segundo as normas. Mas necessita de mestres. De nós, o povo espera a atitude do sábio que ilumina, conduz, acompanha. Que ajuda a rezar e a fazer da vida inteira uma oração. Que ajuda a transformar todo o existir num contínuo louvor ao Pai, por Jesus Cristo no Espírito Santo.

 

Caros irmãos, ao presenciar uma ordenação sacerdotal, já todos vimos como aos sacerdotes são ungidas as mãos, tornando, desse modo, clara a sua missão de santificar o povo cristão e de oferecer o sacrifício que é o proprio Senhor Jesus. E aos bispos é ungida a cabeça, significando com esse gesto a sua particular participação no sumo sacerdócio de Cristo.

Mas, no dia do nosso baptismo, a Unção do Espírito — que, na Sinagoga de Nazaré, manifestou a Jesus como o Cristo, o Ungido do Senhor — foi derramada sobre cada um de nós, mostrando-nos como cristãos (outros Cristos), membros do povo sacerdotal, da nação santa, do novo povo de Deus. O mesmo é dizer, mostrando-nos a todos como orantes, ou seja: aqueles que, desde o mundo, elevam constantemente o hino de glória que reconhece o amor misericordioso de Deus.

 

De facto, a oração não é algo de facultativo. Esse tratar de amizade (como gostava Santa Teresa de definir a oração) é próprio de quem vive com Deus. Por isso, rezemos todos uns pelos outros e por este nosso mundo. Ao Pai, elevemos o louvor que Ele merece; façamo-lo por meio de Jesus, sacerdote e pontífice da nossa fé, e sempre no seio desse oceano de amor que é o Espírito Santo.

 

Sé do Funchal, 28 de março de 2024

D. Nuno Brás, bispo do Funchal

[1] E. BIANCHI, Il presbitero e la preghiera, Riv. Clero Italiano, 2011.

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