Fé marítima salgada pela crença…

A. Síllvio Couto

Quem assistir ou participar numa procissão com gentes do mar sente que há algo de diferente nessa manifestação de fé, desde a devoção até à organização, passando até pela exuberância de crenças. O povo cristão – dizemo-lo sobretudo na caracterização católica – ligado ao mar comporta-se em terra como trata como o seu ganha-pão e contínuo perigo: tenta dominá-lo, embora lhe tenha medo ou algum respeito.

Parece-nos que não há nenhum ateu entre os homens que vão para o mar. No entanto, também não encontraremos muitos cristãos assumidos, pois a expressão religiosa parece que pode enfraquecer os ‘lobos do mar’, que, em terra, se tornam quase cordeiros… entre os conterrâneos.

Cada homem do mar tem (como que) subjacente uma expressão de crença que talvez só ele – e um pouco a família mais próxima – conhece e que se exprime com os seus rituais. Cada um tem as suas rezas, os seus gestos de boa-sorte e até os hábitos muito pessoais, que quase esconde daqueles com quem trabalha. Com efeito, em certas zonas do nosso país, nas bóinas ou nos casacos escondem-se artefactos religiosos mais íntimos, tais como medalhas e símbolos de devoção… quase sempre colocados (ou cosidos) pelas mulheres e as mães, que velam pelo bom sucesso dos seus homens… sobre as águas do mar.

Vencer o mar pela união… em terra

 

Embora nos tempos mais recentes se possa ter perdido alguma da religiosidade entre os homens do mar – as mulheres continuam, na maior parte das situações, a ser as vigias da crença em terra – podemos dizer que em cada homem marítimo, sobretudo na versão piscatória, há um ser crente, mesmo que o seja um tanto rude e sem formulação consistentemente verbalizada. Até aqueles que pretendem passar a imagem de que ‘não acreditam em Deus nem em Santa Maria’ – como expressão de um certo agnosticismo pretensamente ideológico – nas horas de maior aflição voltam-se para o santo ou a santa da sua devoção… mais íntima e quase do tempo da sua infância.

Por outro lado, é interessante verificar que, ao longo da costa portuguesa, as maiores devoções populares se encontram referenciadas a Cristo nalguma versão na Cruz e a Nossa Senhora nalgum outro momento de sofrimento, como por exemplo: Nossa Senhora da Agonia, Nossa Senhora da Bonança, Senhor dos Navegantes, Senhor Jesus das Chagas, Senhor do Bonfim, Nossa Senhora da Boa Viagem, Senhora do Carmo ou Nossa Senhora de Troia…

Por seu turno, as representações iconográficas são, muitas vezes, de pequenas imagens ou então de outras de grandes proporções. A proximidade ao abismo, simbolizado no mar e nas escarpas, também aparece nalgumas representações, tais como Nossa Senhora da Nazaré, dos Remédios ou do Cabo Espichel.

A força na fraqueza está suficientemente registada nas mais díspares situações dos nossos homens do mar, sem nunca esquecermos o suporte familiar da mulher, acrescentando, antes do que diminuindo a teia religiosa da expressão de fé…

Tradições de transversais de ‘visita’… das Senhoras

 

Do contacto havido, enquanto diretor nacional do ‘Apostolado do mar’, com algumas comunidades marítimas – sobretudo na incidência piscatória – vimos que, na véspera da festa nalgumas comunidades, há uma espécie de ritual de visita de uma imagem de devoção da terra à outra Senhora de proximidade ou de proteção ao mar. Esta espécie de visita dá-nos uma leitura de complemento das devoções e até de comunhão entre povoações, por vezes, rivais, que, por ocasião da festa anual, fazem as pazes. Deste modo como que se complementam e entrecruzam as manifestações de fé – seja na Fuzeta ou em Vila Praia de Âncora – sabendo acolher o distinto e valorizar o idêntico.

Também as procissões pelo espaço marítimo – na totalidade ou em parte – denota essa conjugação de expressões de fé e até de apaziguamento das forças marítimas pela invocação da proteção divina… tanto de Nossa Senhora como de outros santos relacionados com o mar, como São Pedro ou outros apóstolos pescadores.

Numa palavra: o povo relacionado com o mar sabe condimentar a sua fé com as raízes de comunhão cristã… mais ou menos esclarecida e comprometida. Com efeito, não será pelo povo marítimo que a fé católica perderá a sua originalidade e a expressão pública, no «pátio dos gentios»… embora seja preciso investir no seu esclarecimento e boa condução. O ‘Apostolado do mar’ tem vindo a fazer algo por isso, precisando de maior empenho de todos os intervenientes.

A. Síllvio Couto, diretor nacional do ‘Apostolado do mar’

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