Fátima, «Santuário do mundo e para o mundo todo» (c/vídeo)

Pedro Valinho, diretor do Departamento para o Acolhimento de Peregrinos do Santuário de Fátima, aborda relação com quem procura a Cova da Iria – da busca interior, a pé, em Portugal, ao crescimento de quem chega dos cinco continentes, em particular da Ásia

Entrevista conduzida por Henrique Matos

Agência Ecclesia (AE) – Estamos no início de mais uma peregrinação aniversária e o santuário de Fátima assinala também este momento com o lançamento de um contributo dirigido ao peregrino de Fátima. Um guia do peregrino onde, de alguma forma, está sintetizado o essencial da mensagem de Fátima e daquilo que este espaço de oração promove e oferece. O que se pretende com o lançamento de uma obra com estas características?

Pedro Valinho (PV) – Antes de mais, devo recordar que estamos a reeditar o guia do peregrino mais do que a lançar uma nova edição. Há uma longa tradição do guia do peregrino de Fátima, a primeira edição data do anos 20. O santuário oferecia aos peregrinos um manual com  os subsídios básicos para uma vivência espiritual da sua caminhada até Fátima, caminhada entendida como caminho a pé ou por outros meios, fazer-se o caminho até ao santuário com um teor espiritual .

Aquilo que se entendeu fazer foi oferecer aos peregrinos uma proposta de leitura da mensagem de Fátima, atual, para os peregrinos que se fazem a caminho de Fátima, oferecendo também orações, informações sobre o que podem encontrar, como melhor preparar a caminhada.

Depois há uma outra ideia, essa sim original, neste guia: pensar-se como fazer peregrinação no Santuário de Fátima, o próprio santuário que se torna espaço onde se pode fazer peregrinação. Traçamos diferentes caminhos, a que chamamos caminhos da misericórdia, que se podem fazer no espaço e ir vivendo a partir do espaço algo da mensagem de Fátima.

 

AE – Vai muito na linha do próprio tema do peregrinar em Igreja. Este peregrino também está a mudar? O santuário tem essa perceção de que os peregrinos estão a mudar à medida que o tempo passa?

PV – Sem dúvida, são 100 anos de história e ao longos dos 100 anos houve sempre esta evolução no perfil do peregrino. Fátima tem uma mensagem que abraça o mundo e não é sem razão que muitos chamam o ‘altar do mundo’ e bastará num dia como este, da próxima peregrinação aniversária, para percebermos que rostos de todos os continentes estão aqui representados no recinto de oração.

É verdade que, tradicionalmente, os peregrinos eram provenientes de Portugal e dos países vizinhos, europeus sobretudo. Ao longo dos tempos foi crescendo os peregrinos norte-americanos, do norte da Europa e, depois da queda do muro de Berlim, assistimos a um incremento do número peregrinos vindo dos países da União Soviética; agora vemos surgir, com alguma surpresa, com muita força, grupos de peregrinos vindos da Ásia e da África, também. Mas da Ásia há um grande crescimento do grupo de peregrinos, parece ser um reflexo do quão Fátima fala numa linguagem simples, que chega a todas as expressões e a todos os continentes, as pessoas sentem-se movidas por uma mensagem e querem fazer-se presentes neste santuário.

 

AE – Estes peregrinos que chegam, nomeadamente, do continente asiático lançam desafios novos e concretos ao santuário no sentido de criar estruturas de acolhimento a um grupo linguístico diferente do que se estava habituado…

PV – De facto, desde logo, a grande dificuldade é a questão da língua, a comunicação é difícil com alguns peregrinos vindos de certos países. Há as línguas francas que nos ajudam a aliviar essa dificuldade… também é verdade que o santuário de Fátima tem alguma tradição na tradução de subsídios e pequenos livretos que ajudam a viver o espaço e a peregrinação ao santuário em múltiplas línguas. É verdade que temos redescoberto a necessidade de ir além disto, de procurar oferecer aos peregrinos vindos dos países asiáticos, particularmente, a mensagem de Fátima nas suas línguas ou, pelo menos, em línguas que possam compreender.

Esse esforço tem sido feito no acolhimento, na gestão das peregrinações, também nos nossos postos de acolhimento e de informações, há grupos que pedem visitas acompanhadas, hoje começa a ser possível fazer-se com grupos de proveniências e línguas asiáticas. O desafio é grande, mas há um abrir do leque da oferta no acolhimento desses peregrinos.

 

AE – Será um desafio também para este novo contributo, que é o guia do peregrino, aqueles que chegam destas proveniências, destas latitudes?

PV – Há a hipótese de uma tradução, vamos ver em que línguas, mas não queríamos que a oferta ficasse apenas em português, tendo em conta que tantos peregrinos chegam de tantas latitudes. Fátima faz cada vez mais jus a este título de altar do mundo e não queríamos que as ofertas que fazemos ficassem pelo caminho em relação aos peregrinos que fazem caminho até Fátima.

 

AE – Fátima continua a ser destino intenso de peregrinação daqueles que, tradicionalmente, o continuam a fazer a pé…

PV – Sim e até com algum incremento nos últimos anos, o que tal é surpreendente para algumas leituras sociológicas que se faz do tema ‘peregrinar a pé’. É surpreendente assistir a esse incremento, parece-me muito interessante a caminhada em si: se o Homem é alguma coisa é a caminho, daí que, se as pessoas em busca de uma experiência espiritual profunda querem fazer vivência de um caminho, me pareça natural. É a busca de um diálogo, é como que representação da busca interior que se faz.

Durante muito tempo esta ideia, esta procura, esteve algo desligada de Fátima, como destino, mas creio que cada vez mais assistimos a isto: o peregrino quer fazer uma caminhada a pé, como busca interior, e escolhe Fátima como destino, porque reconhece uma mensagem que nos põe a caminho, que nos dinamiza, desinstala e procura o melhor de nós. As pessoas identificam-se com isto e fazem-se ao caminho, este incremento é também resultado disto.

AE – Não estamos a falar de um peregrino idoso, de meio rural, de religiosidade mais tradicional… estamos a falar de muitos jovens que chegam aqui a fazer o caminho a pé.

PV – Também existe o idoso com a sua devoção popular e que vem aqui com toda a sua honestidade, que vem aqui dizer obrigada ao colo materno que lhe foi oferecido… mas existe cada vez mais o grupo de jovens ou o adulto comprometido com a vida, desinstalado ou à procura, que quer fazer uma experiência, uma vivência dinamizada pelo caminhar, que é a tradução desta procura interior que vive. Esse perfil de peregrino tem aumentado a olhos vistos nos últimos tempos.

 

AE – Há aqui também, podemos dizer, uma dimensão neste espaço de primeiro anúncio. Para aqueles que tantas vezes chegam aqui acompanhando familiares, porque a idade não permite que se desloquem sozinhos, o filho que os traz, ou o familiar que fica e participa das celebrações, depois sente-se tocado e percebe aqui algo de diferente. Há aqui também um ambiente propício ao primeiro anúncio?

PV – Creio que sim. Não é por acaso que os santuários passaram a ser coordenados pelo dicastério para a Nova Evangelização, por esta ideia de que um santuário é lugar de evangelização, um lugar missionário. Também os santuários são lugares missionários, creio que no nosso tempo de primeira linha, porque desejamos que aquele que nos visita – mesmo não estando, não vindo em tom de peregrinação – saia como peregrino.

Aquilo que se vive no Santuário de Fátima interpela-nos – seja o que vemos, os gestos simples, o colocar de uma vela, a participação numa celebração, o cântico litúrgico, um recinto cheio iluminado pelas velas, uma imagem iluminada que passa pelo mar de luzes -, interpela-nos, inquieta-nos. E faz questionar e coloca- nos a caminho.

c, também lugar de partida para peregrinações interiores e creio que este gestos são de tal forma proféticos que nos desafiam a procurar aquilo que não sabemos que andamos à procura.

 

AE – É um grande desafio de linguagem, de estrutura teológica da mensagem quando se tem de dirigir a peregrinos tão diversos, sejam da Ásia, do ambiente rural ou das grandes cidades de Portugal, a pé ou quem aqui vem ao fim-de-semana… para todos é preciso uma linguagem diferente… como é que o santuário consegue falar a todos?

PV – Eu diria que através de três métodos. Um deles já consagrado na Igreja que é a Liturgia, independentemente das línguas ou das proveniências, ou da nossa maior ou menor participação eclesial, todos neste recinto compreendem o mistério que se está a viver, a celebração eucarística ou do terço, um Glória que se reza com a vela no ar. Isto fala-nos.

Por outro lado, há uma aposta séria no dizer a mensagem através do belo, creio que isso tem sido, aos longo dos 100 anos do santuário, uma aposta séria, que faz parte da génese de Fátima, os olhos enchem-se do belo e isto marca, transforma-nos interiormente. Na vida dos pastorinhos foi algo assim, o que os fascinou e fazerem comprometerem-se de facto foi uma experiência de beleza que não sabiam dizer, mas que não podiam não dizer e, portanto, teriam de dizer alguma coisa daquela beleza que experienciaram. O Francisco, que nunca ouviu Nossa Senhora, mas que viu, para ele ver foi tudo. A grande marca da santidade dele foi o fascínio da beleza de Deus. Tenta-se fazer isso no santuário também.

Por último, mas não menos importante, outra forma de acolher todos é a aposta séria no acolhimento. O Santuário de Fátima é, creio eu, sobretudo a expressão do colo materno de Deus que aqui nos foi oferecido. É disso que os peregrinos vêm à procura e a nossa missão é de oferecer esse colo, às vezes não são precisas palavras: os gestos, a disponibilidade de todos os que aqui trabalham, nesta equipa grande que é o santuário, contribuem para isso.

 

AE – Estamos a falar de uma realidade que não se esgota no recinto … há um espaço que vai aos Valinhos, um ambiente rural, campestre, onde os pastorinhos viviam e há todo um ambiente que se integra aqui à volta deste mistério que aqui é assinalado e celebrado.

PV – E com cada vez mais procura… Aljustrel, o caminho dos pastorinhos, a Via-Sacra dos húngaros que entronca no caminho dos pastorinhos e é local de grande procura dos grupos, portugueses ou não; de facto, aquilo que procuram é o recolhimento que os pastorinhos procuravam também. Mais uma vez, recordando o Francisco, que era o menino contemplativo, do recolhimento e que procurava aquele espaço para poder estar a sós com Deus, creio que é isso que se procura quando se faz o caminho dos pastorinhos, um caminho muito procurado hoje, o que nos coloca outros desafios, de manter o lugar de silêncio e oração, mas marca a peregrinação a Fátima.

 

AE – Nesta peregrinação internacional aniversária de maio estará o cardeal de Manila, num sinal de atenção à Ásia, disse o bispo da diocese, D. António Marto. Há uma atenção especial para se descobrir de forma mais intensa Fátima e percebe-se como aqui chegam países de existência cristã difícil, como o Sri Lanka, atingido recentemente pelos atentados graves contra os cristãos.

PV – Sim, nos primeiros quatro meses tivemos já, pelos menos, oito grupos do Sri Lanka, registados connosco. Não conseguimos ter números de todos os que chegam, nem todos se procuram registar. Estes eram mais de cinco centenas de peregrinos, do Sri Lanka marcado pelos incidentes recentes. Temos por exemplo grupos da China, que talvez fosse um país que nos surpreende que enviem peregrinos a Fátima; temos muitos grupos da Coreia do Sul e sabemos o quanto a relação entre as Coreias pode favorecer isso.

Fátima entra no imaginário dos peregrinos como sinal de esperança para quem vive situações de opressão, de dificuldade, em que a sua fé não pode ser expressada de forma simples; tal como foi noutros tempos e contextos políticos, Fátima é sinal de esperança e para muitos peregrinos era o último bastião que mantinha a fé acesa, tal como acontece também agora em muitos países de outros contextos, como na Ásia ou em África.

Fátima continua a ser sinal de esperança, esta luz que vai continuando a brilhar e os peregrinos desejam cá estar, para manifestar a gratidão.

 

AE – Podemos dizer que há uma atualidade particular da mensagem de Fátima nestas regiões do mundo com uma história recente de totalitarismos ateus e contrários à religião, os povos que experimentam a presença e vontade de se libertarem de alguma forma destes sistemas políticos opressores? Temos peregrinos do Vietname, vindos das Filipinas, latitudes em que a mensagem de Fátima é atual…

PV – Fátima será sempre atual para quem viva num contexto em que o humano não se consiga expressar. Fátima vem mesmo dizer isto, se nós abrirmos a Deus encontraremos o cuidado do outro e todo aquele regime ou sistema político, social, económico e cultural que, por sistema, negue Deus e rejeite o cuidado do outro é um sistema falível, antes de mais, e que conduzirá o humano à sua autodestruição. Foi isso que representou na mensagem de Fátima a palavra Rússia, tão discutida no segredo de Fátima.

Rússia é o símbolo destes sistemas totalitários, um sistema político que procurou a destruição e a negação de Deus e que tinha uma ideia do humano, da autoconstrução do Humano, que o levava para autorreferência e que tirava de cena o cuidado do outro. São esses os erros que a Rússia poderia espalhar e creio que os peregrinos de outros contextos e horizontes, hoje, reconhecem é que a mensagem de Fátima lhes fala à sua situação presente; eles também vivem situações em que o cuidado do humano é colocado em causa, porque é negada a centralidade de Deus e isto é tão verdade no contexto asiático, por exemplo, como é em contextos capitalistas embora possa ser muito mais evidente quando experienciamos uma falta de liberdade séria e atroz.

 

AE – Podemos dizer que há estas leituras novas da mensagem de Fátima, nestes ambientes também a Oriente, onde a destruição de Deus pode não acontecer num regime comunista ateu mas pelo consumismo; em países em que as categorias de vida estão a mudar e a virar para onde o consumismo e a grande produção, o trabalho intenso, são formas de aniquilar Deus nas sociedades contemporâneas.

PV – Creio que qualquer projeto político ou social que seja egocentrado retira, quer admita ou não, retira de cena Deus, porque é egocentrado e o consumismo é essa a questão. No fundo procura-se a satisfação de todos os prazeres próprios.

A identificação com a mensagem de Fátima é possível para todos os que vivem nos diferentes contextos, porque aquilo que Fátima nos vem recordar é que o Homem está no centro do cuidado de Deus. Nós, que somos Igreja e que nos identificamos com a imagem e semelhança de Deus, somos chamados a cuidar do outro.

 

AE – Fátima vai promovendo, periodicamente, congressos teológicos, de reflexão teológica, nesta linha deste despertar do interesse da Ásia pela mensagem de Fátima é também um desafio aos teólogos para refletirem esta dimensão?

POV – O alargar do horizonte de Fátima é sempre um desafio… Este ano teremos o simpósio que trata do tema “peregrinações”, peregrinar em Igreja, precisamente. E vamos percebendo a dinâmica de peregrinar a Fátima, não pode ser lido a partir do perfil do peregrino tradicional que não corresponde completamente ao peregrino de hoje. Portanto, hoje temos gente de todo o mundo e de todos os contextos e tudo isto tem de entroncar na nossa reflexão teológica sobre Fátima.

A mensagem de Fátima é eco do Evangelho e esta é universal; no fundo, Fátima está a cumprir a sua missão de ser eco do Evangelho para todos os povos. Se Fátima continuar a ser luz para todas as nações estamos a ser fiéis ao que nos foi pedido por Nossa Senhora em 1917.

 

AE – Este ano há em Fátima uma atenção especial à Ásia, com a presença de responsáveis das Filipinas e da Coreia do Sul?

PV – Este ano nós temos essa particular atenção, mas em boa verdade temo-la diariamente no acolhimento que fazemos aos grupos; quisemos marcar esta realidade, que já é nossa, do aumento substancial do número de peregrinos vindos da Ásia, dizer-lhes que são muito bem-vindos e que esperamos poder oferecer-lhes a mensagem de Fátima, para que continue a ser para eles também sinal de esperança.

Fátima é um santuário para o mundo todo, santuário do mundo e para o mundo todo. A Ásia é sempre o horizonte mais longínquo e até lá chegarmos percorremos o mundo todo, no fundo é isto. Por exemplo, olhando a esplanada no 13 de maio, percebe-se que o mundo se concentra em Fátima, porque reconhece em Fátima, talvez, a imagem do que é ser Igreja e do que é caminhar em Igreja. Trazer os presidentes das grandes celebrações deste ano do nosso horizonte mais longínquo é falar universalidade do que Fátima tem para oferecer.

 

AE – E isto para Fátima cria desafios específicos, é necessário ter por aqui, desde a Hotelaria a outros serviços do santuário, pessoas que dominem linguisticamente estas proveniências?

PV – Já vamos tendo alguma colaboração, por exemplo no coreano, que é talvez uma das línguas asiáticas mais frequentadas no santuário. Assiste-se a um multiplicar da universalidade, também linguística, ao percorrer o Santuário de Fátima, cada vez mais um reflexo, também sonoro, da universalidade da mensagem.

 

AE – E podemos ter folhetos em mandarim, naquele expositor?

PV – Poderemos vir a ter em breve, sim, e em coreano também.

 

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