Ética e a moral de Raul Brandão

São 316 páginas. Já foram mais, confessa o autor. Em “O Teatro da Consciência – Uma Leitura Teológico-Moral da Obra de Raúl Brandão” está compilada a tese de doutoramento do padre terceirense Júlio Rocha. A obra, com lançamento marcado para amanhã, sábado, pelas 17H00, no auditório da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo, resulta de três anos de investigação que lhe valem o doutoramento. A apresentação do livro está a cargo de Jorge Teixeira da Cunha, professor da Universidade Católica no Porto, orientador da tese. Mais do que o culminar de um percurso académico, o projecto revelou-se numa empreitada de introspecção e reflexão sobre a ética, a moral e a religião. Em “O Teatro da Consciência – Uma Leitura Teológico-Moral da Obra de Raúl Brandão”, o Padre Júlio Rocha acaba de reeditar no século XXI princípios e valores que considera perdidos. No porquê da escolha de um autor considerado “difícil” e mesmo crítico da Igreja Católica na altura, o padre Júlio Rocha aponta a sua intemporalidade e os seus princípios. “No fundo, Raúl Brandão era profundamente religioso. Acreditava numa Igreja espiritual e desapegada, sendo sua uma das reflexões mais profundas sobre a Igreja”. Júlio Rocha refere que a escolha deste escritor surgiu no seguimento de um outro estudo que levou a cabo para a sua tese de mestrado centrado em Dostoievski. “Raúl Brandão é o Dostoievski português no sentido em que vai até às profundezas da condição humana”, afirma, acrescentando que “a sua arte nasce do questionamento da vida e do sentido da vida”. A crise da razão, a morte das ideologias, a derrapagens do valores sociais, humanos e religiosos, a superficialidade do homem – estas são algumas das tormentas que tanto na altura, como agora, assevera o pároco, estão na ordem do dia pela mão do escritor nascido no Porto. Uma das figuras importantes na ficção de Raúl Brandão e que mereceu atenção está no pobre: “o pobre é o herói, é o outro, é o que coloca em perspectiva o autor, é quem aponta as fragilidades”, pormenoriza. Do autor, Júlio Rocha admira igualmente o seu olhar sobre a dor e o sofrimento: “ele só acreditava num Deus crucificado”, acrescendo que os “hospitais são os alambiques do sofrimento onde se destila a dor”. “Estas são ideias muito actuais”, aponta, referindo-se ao facto de as pessoas não quererem lidar com estes processos hoje em dia: “tal como a reciclagem do lixo, as pessoas reciclam o sofrimento empacotando os doentes nos hospitais, metendo os idosos em lares e os marginais na prisão”. Para o padre Júlio Rocha, a actual profusão do niilismo tem desencadeado uma profusão da literatura “new age” e de gosto pelo obscurantismo e pela teoria da suspeição que “enche livrarias e programas de televisão”. Do estudo de cinco das principais obras de Raúl Brandão, nomeadamente, “Histórias d´um Palhaço”, “Os Pobres”, “A Farsa”, “Húmus” e “O Pobre de Pedir”, o padre Júlio Rocha efectuou aquilo a que chama de “análise dramática”, uma metodologia em que é criado um narrador baseado na consciência brandiana. Este exercício revela-se, diz-nos, essencial uma vez que só assim se conseguem formar as consciências pelo confronto com outras consciências. “A ética e a moral são essencialmente alteridade. A minha consciência só se forma na do outro. As consciências interagem entre si”, explica. “O grande problema da nosso século é que a maioria das pessoas ainda não entendeu que vive sozinha”, aponta negativamente. A intemporalidade da obra de Raúl Brandão surge a vários níveis. Para o formando, ele é, sem duvida, “o peregrino do absoluto” em que a vida “ou é um acto religioso ou um acto estúpido e inútil”, defendendo um “cristianismo puro, livre de compromissos terrenos”. A literatura tem sido para o sacerdote como uma fonte de sabedoria cuja escrita deve transbordar para a prática da realidade. “A arte da literatura é o campo fecundo da experiência humana escrita”, assenta. Entre a leitura de algumas passagens da obra e a reflexão sobre o seu significado, o padre não tem dúvidas da actualidade e da pertinência de um autor que “viveu (entre 1867-1930) numa das mais conturbadas épocas do país, marcada pela crise nacional e pela implementação da República”. O grande modernista português na prosa de ficção representou uma “verdadeiro desafio” para Júlio Rocha. O entrosamento entre pesquisador e pesquisa foram, ao longo da análise, aprofundados. Assim, além do desafio, o simbolismo voltou a assumir um papel importante na vida do autor, comprovado na data do lançamento do livro que acontece precisamente dois anos após ter defendido a tese de doutoramento e 80 anos após a publicação da obra “As Ilhas Desconhecidas” em que Raúl Brandão retrata os Açores.

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