Esplendor do ouro em Fátima

Pe. Ivan Rupnik apresenta o painel de 500 metros quadrados, em ouro e terracota, da nova igreja da Santíssima Trindade A entrada na nova igreja da Santíssima Trindade significará, para muitas pessoas, um momento quase imediato de espanto perante o painel de 500 metros quadrados, atrás do altar, em ouro e terracota. A obra é da autoria do Pe. Ivan Rupnik, jesuíta esloveno famoso pelo seu trabalho na capela Redemptoris Mater, no Palácio Apostólico do Vaticano. Com uma equipa de 20 artistas de 8 países conseguiu, em menos de um mês, dar vida a um espaço de luz, sem sombras, que entra em forte contraste com a grande e pesada cruz que se eleva sobre o altar. Em entrevista conjunta à Agência ECCLESIA e ao jornal Público, o sacerdote explica qual o sentido desta obra “apocalíptica” que quer falar aos peregrinos de Fátima. AGÊNCIA ECCLESIA/PÚBLICO – Que sentido dá ao grande painel do altar, que espiritualidade está por detrás? P. MARKO IVAN RUPNIK –(MIR) Como ponto de partida tomei dois elementos das aparições de Fátima: a mensagem é uma mensagem apocalíptica. Mas este apocalipse é comunicado, expresso, com uma enorme compaixão, misericórdia e amor pelos mais fracos, ou seja, pelos pecadores. Parto do capítulo 22 do Apocalipse de São João: a praça toda em ouro, com o trono de Deus e do Cordeiro e, dos lados, como se se visse através de uma pequena abertura, os santos como na antiga tradição: à direita do Cordeiro a Senhora, à esquerda João Baptista que apontou Cristo como o Cordeiro de Deus. A Senhora está com Jacinta, Francisco e Lúcia ao lado; depois estão os apóstolos, os santos e os anjos. Há um canto franciscano, com a presença de Francisco [de Assis], Clara [de Assis] e o padre Pio. Do outro lado, está Isabel de Portugal, muito visível, e Madre Teresa de Calcutá. A outra coisa interessante é que nas aparições de Fátima aparece uma grande familiaridade com o céu que hoje, neste mundo, é uma coisa estranha, mas muito importante. Estes miúdos. por exemplo, Lúcia quase desiludida por não ir para o céu, Francisco [que] quer ir depressa. Por isso, tomei em consideração um outro dado importante: na liturgia, há uma convocação universal. Rompem-se o espaço e o tempo, todos somos contemporâneos e sucede uma coisa bonita: no meio está o altar, daqui está a Igreja da história, de lá está a Igreja do céu. Repete-se quase a cena de Fátima: as crianças que têm uma abertura ao céu. Nós estamos do lado das crianças, ainda que não nos encontremos lá, estamos face a face com a Igreja do céu e a Igreja da história. Artisticamente, teve também uma intencionalidade. MIR – Quis representar um painel de luz. Tomei como fundo o ouro, que já desde João Damasceno [teólogo, 675-749] representa sempre a fidelidade e a santidade de Deus que não falha, uma luz que não se apaga. Com o ouro, basta pouquíssima luz para que brilhe. Toda a matéria de suporte está colocada de tal modo que surge um grande dinamismo, que não é estático. Mesmo para fazer ver que a vida eterna é um contínuo movimento, é uma comunhão, uma convergência, um encontro. Teve uma grande preocupação em ligar a expressão artística à Bíblia, que nem sempre está presente no fenómeno à volta de Fátima. MIR – Para mim, é importantíssimo. A arte litúrgica tem de ter três pernas para estar em pé. Senão, não se manterá de pé: a Palavra de Deus [é a primeira], que não devo tomar como a compreendo subjectivamente, mas deve haver um eco, uma correspondência na liturgia que pertence a toda a Igreja, não apenas a mim. Ambas estas coisas – a liturgia, a palavra de Deus – se quero compreendê-las bem, devo estar dentro da memória das gerações. A memória, a Tradição, com maiúscula. Tentei fazer algo assim: está a Bíblia (o Apocalipse), está o discurso da liturgia que expliquei, e a composição e uso das cores segundo a memória da Igreja. Com três pernas já se mantém de pé, mas falta uma quarta, importante: o tempo em que se trabalha, uma abertura ao contemporâneo. Na liturgia há sempre qualquer coisa que não muda e algo que muda com o tempo. É uma dimensão mais ligada à pessoa, ao sujeito, à cultura, ao lugar, ao tempo. Creio que se compreende ali que os meus mestres são também artistas do século XX, como Kandinsky. Essa é uma perna que nem sempre está presente na arte cristã contemporânea… MIR – Sim, esse é um ponto muito débil. Se [a arte] se baseia apenas na imitação do passado, não diz nada e é sempre uma arte anémica, porque não está atenta à comunicação, está atenta a si mesma. Se se baseia apenas no diálogo contemporâneo, arrisca-se a ficar por diversas emoções imediatas. É possível perceber uma influência da arte oriental, pelo menos visualmente. Há uma tradição cristã oriental que se torna presente aqui em Fátima. Foi intencional? MIR – Não. Desligando de Fátima, creio que chegou o tempo de uma troca de dons entre Oriente e Ocidente: a arte litúrgica ocidental perdeu-se num subjectivismo que as pessoas já não percebem. A arte oriental perdeu-se numa esclerose e numa fossilização, já não está viva. Quando na história se encontraram estes dois grandes pulmões, foi sempre um bem. Veja-se o que aconteceu na Sicília, Ravena, ou o que fizeram El Greco ou Matisse, o último exemplo. Pessoalmente, procuro sempre ver como poderei, com os olhos de um iconógrafo, pintar com linguagens que eu conheço, contemporâneas, modernas. Não se trata de uma imitação do Oriente, não são ícones. Por outro lado, penso que em Fátima quase não poderia haver uma arte exclusivamente ocidental, porque Fátima teve esta marca importante de tudo o que respeita a Rússia, ateísmo, comunismo, Leste. Uma influência dos dois pulmões em Fátima é importante. Aliás, basta ver como João Paulo II está ligado a Fátima. Foi difícil a concepção de uma obra desta envergadura? MIR – Digamos que não foi fácil. O arquitecto Tombazis foi muito exigente, não queria arcos, não queria figuras, só abstracto, não figurativo. Mas como poderia em Fátima, aquela gente de joelhos, chegar a uma igreja e não ver um rosto da Senhora, um santo? Como é possível? Não o imagino. A época que mais estudo como artista, para inspiração, é o pré-românico, o primeiro românico e o primeiro bizantino, no primeiro milénio. Aqui, propus uma figuração a que cheguei depois de muitos anos, uma figuração não agressiva, mas que pôde ser também aceite pelo arquitecto. No final, chegámos a acordo, a uma comunhão. Acabei por fazer algo que nunca tinha feito, pois os meus mosaicos são feitos de pedra, mármore, esmalte, ouro sobre vidro, nunca em ouro e terracota. Foi algo completamente inédito. Foi muito difícil do ponto de vista técnico? MIR – Sim, foi muito complexo, dado que cada peça do painel passou pelas nossas mãos nove vezes, é um trabalho enorme. Quando, no início, nos fomos distribuindo pelo espaço, era impressionante, parecíamos formigas. É precisa, verdadeiramente, uma força criadora, uma vontade muito forte para não desanimarmos após um mês num ritmo tremendo. O domínio espacial não foi fácil, porque é grandíssimo. Só chegando mais perto percebemos: 500 metros quadrados… O painel dominará visualmente o ambiente do altar, mas tem a companhia de uma cruz de 7,5 metros, em bronze. Os dois elementos convivem bem? MIR – Sim, teologicamente, deveria ser perfeito, porque primeiro está o crucifixo e depois o Cordeiro da vitória. Neste momento, o Cristo está um pouco baixo, sobretudo para o celebrante, é enorme e muito escuro, tem um certo peso. Apesar disso, sobre um fundo dourado, luminoso, emergirá ainda mais. Não sei se as pessoas vão olhar mais para o crucifixo ou para o Cordeiro, a Senhora, os santos que estão por trás… Octávio Carmo e António Marujo FOTO: LUSA

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