Obra de Evgeny Afineevsky destaca impacto dos gestos e palavras de Francisco em pessoas de diversas proveniências e religiões
Lisboa, 22 out 2020 (Ecclesia) – O novo documentário ‘Francesco’, que estreou mundialmente esta quarta-feira em Roma, mostra um Papa que “chora com a humanidade”, retratando o atual pontificado através de várias das viagens internacionais e alertas para a crise socioambiental.
O filme de Evgeny Afineevsky, realizador já nomeado para os Óscares, começa com o Papa a caminhar, à chuva, antes da inédita oração e bênção extraordinária ‘urbi et orbi’ de 27 de março, numa Praça de São Pedro deserta por causa da pandemia.
A obra segue com imagens de ruas vazias, em várias partes do mundo, com mensagens do Papa sobre a necessidade de fazer “escolhas”, face às lições da Covid-19, sobre o que é realmente “importante”.
A preocupação com as alterações climáticas liga-se às migrações forçadas, com impacto na América Central ou na Síria, destacando o discurso no Congresso norte-americano em 2015, onde o Papa defende que todos podem “fazer a diferença”.
Frei Michael Perry, ministro-geral dos Franciscanos, revela durante ao filme que mostrou ao Papa a imagem de um crucifixo semidestruído, cravejado de balas, na Síria, o que provocou forte emoção no pontífice.
“É um homem que chora com a humanidade, que ri com a humanidade”, sublinha o religioso, de lágrimas nos olhos.
Afineevsky mostra ainda o testemunho de Nour, refugiada síria, que integra uma das três famílias que o Papa levou a Roma, desde Lesbos, em abril de 2016
“Nenhuma mãe escolhe este caminho se não acreditar que a água é mais segura do que a terra”, assinala, antes de declarar que Francisco mudou a vida da sua família, muçulmana.
“Tocou o meu coração e também me surpreendeu”, afirma.
O Papa diz que foi um “pequeno gesto”, que todos podem fazer, na ajuda a quem mais precisa – numa conferência de imprensa em que se mostra muito comovido, ao regressar ao Vaticano desde a ilha grega, com os desenhos que as crianças refugiadas lhe ofereceram.
A obra mostra ainda sobreviventes de Auschwitz, onde o Papa esteve em julho de 2016, e responsáveis judaicos, com elogios para a sua capacidade de recordar “as vozes silenciadas da história”.
O autor do documentário teve acesso alargado ao material audiovisual recolhido pelo Vaticano – incluindo imagens do Papa emérito Bento XVI – e outras entrevistas realizadas a Francisco, com destaque para a conversa entre o Papa e a jornalista mexicana Valentina Alazkari, em 2019, da qual se citam críticas à política da administração de Trump de separar as crianças dos seus pais, na fronteira.
Francisco questiona a “cultura de defender territórios erguendo muros”, sendo possível observar o Papa a rezar no Muro das Lamentações, em Jerusalém; no muro de separação da Cisjordânia, em Belém; e junto à fronteira EUA-México, num memorial aos migrantes que perderam a vida.
Uma das entrevistadas é a irmã Norma Pimentel, diretora executiva da ‘Catholic Charities’ do Vale do Rio Grande (Texas), que descreve a experiência de visitar crianças separadas de seus pais em um centro de detenção.
A religiosa foi considerada pela revista Time como uma das pessoas mais influentes do ano, pelo seu trabalho de acompanhamento e inclusão de migrantes.
O filme evoca ainda a visita às vítimas do tufão Hayan, nas Filipinas, no início de 2015: Francisco viajou até à zona mais atingida pelo desastre natural, apesar do mau tempo no arquipélago e presidiu a uma Missa ao ar livre, junto ao aeroporto de Tacoblan.
“Muitos de vocês perderam tudo. Eu não sei o que dizer, mas Ele [Jesus] sabe”, referiu na sua homilia, numa passagem apresentada no filme.
O cardeal Luis Antonio Tagle, um dos principais colaboradores do Papa, era então arcebispo de Manila e fala das impressões provocadas por esta viagem.
“Penso que Deus o fez experimentar o que aquelas pessoas experimentaram”, refere o presidente da Cáritas Internacional, visivelmente emocionado.
O documentário tem entrevistas com Marcelo Suárez-Orozco, da Academia Pontifícia das Ciências Sociais (Santa Sé), e Daniela Pompei, da Comunidade de Santo Egídio (Roma), responsável pelo acompanhamento de refugiados na Itália, sobre o fenómeno das migrações.
A entrevistada destaca que a viagem do Papa a Lampedusa, em 2013, com a denúncia da “globalização da indiferença”, ajudou a dar início a um programa de salvamentos de pessoas, no Mar Mediterrâneo, por parte da Itália, que resgatou 150 mil pessoas.
O arcebispo de Bangui (República Centro-Africana), cardeal Dieudonné Nzapalainga, fala no Mar Mediterrâneo como “cemitério de seres humanos” e destaca a coragem do Papa em visitar o seu país, em 2015, num contexto de guerra, admitindo que houve receios segurança de Francisco – que rejeitou um veículo blindado e passou por um bairro muçulmano, discursando ainda na Mesquita central de Bangui.
Na República Centro-Africana, o Papa passou por um campo de refugiados, onde deixou uma mensagem repetida no filme: “Todos somos irmãos”.
Refugiados rohingya, por sua vez, sublinham o impacto da visita de Francisco ao Bangladesh e ao Myanmar, em 2017, explicando que as denúncias de “genocídio” tiveram um impacto positivo na sua vida, com maior presença de ONG no terreno.
Outros entrevistados deixam elogios à coragem de falar do “genocídio arménio” no seu centenário em 2015; no ano seguinte, o Papa deslocou-se à Arménia e visitou o memorial dedicado às vítimas do conflito com a Turquia.
Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, evoca a história de emigração da sua própria família, da Itália para a Argentina, que é relatada também pelo seu sobrinho José Ignácio.
O documentário retoma os desmentidos sobre a alegada relação do atual Papa com a ditadura Argentina, sublinhando que o então padre Bergoglio, jesuíta, ajudou muitas pessoas a fugir do regime – com depoimentos de Pérez Esquivel, prémio Nobel, e Estela de Carloto, das Avós da Praça de Maio, que assume ter-se enganado em relação a Francisco.
Afineevski mostra imagens da vida do antigo arcebispo de Buenos Aires, com destaque para as passagens pelos bairros mais pobres e violentos, além da prática de lava-pés a populações desfavorecida – que replicou como Papa, junto de presos e refugiados.
O realizador conversa com dois amigos próximos de Francisco, o rabino Abraham Skorka, de Buenos Aires, e o professor muçulmano, Omar Ahmed Abboud, secretário-geral do Instituto de Diálogo Inter-religioso da República da Argentina, que estiveram com o Papa junto ao Muro das Lamentações.
A obra mostra um Papa que pede “desculpa”, como aconteceu no caso do bispo Barros, durante a visita ao Chile, em 2018, marcada pelos casos de abusos sexuais que envolviam membros do clero.
Francisco admite o “choque” que sentiu ao perceber que tinha sido mal informado; Juan Carlos Cruz, uma das vítimas que assumiu as denúncias ao antigo padre Fernando Karadima, na origem do escândalo, diz que a sua vida “mudou” ao ser acolhido pelos enviados especiais do Papa, D. Charles Scicluna (outro dos entrevistados) e Mons. Jordi Bertomeu, e ao ser convidado para um encontro com Francisco, que aconteceu no Vaticano.
“Reuni-me com ele umas cinco vezes, sempre em função da sua agenda, tivemos também duas entrevistas diante da câmara”, refere Afineevski, de 48 anos, nascido em Kazán (antiga União Soviética), que cresceu em Israel e emigrou para os EUA.
O realizador diz não querer abordar questões religiosas, mas as ideias do Papa sobre os grandes desafios da atualidade; o filme inclui declarações de Francisco sobre a necessidade de não discriminar os homossexuais.
OC