Encontro no CCB e suas interpelações

Lídia Jorge

Passado mais de um mês após o encontro no Centro Cultural de Belém, ainda está muito viva a interpelação que Bento XVI dirigiu à totalidade dos presentes, uma assembleia constituída por cristãos, pessoas de várias religiões, agnósticos e ateus. E provavelmente não sairá tão cedo da agenda, porque as palavras do Papa, sendo duma simplicidade e clareza meridianas, se tomadas a sério, desencadeiam no plano das implicações práticas, alguma coisa mais funda do que uma simples controvérsia. Basta dizer que na sua proposta global, a interpelação convida a uma mudança de atitude que atinge em primeiro lugar a forma como os cristãos se colocam em face das questões da Cultura, muito mais do que a forma como os criadores se posicionam em face do Cristianismo.

É sabido como Cultura e Religião se tocam em espaços difíceis de deslindar, disputando, muitas vezes, a mesma zona da espiritualidade, com atitudes diferentes ou opostas, quando não irreconciliáveis. Ora a Cultura e a Criação, sendo por definição o espaço de todos as liberdades, expressão de todas as crenças e descrenças, o lugar onde se plasmam todas as dúvidas e se dá corpo a todas as revoltas, mesmo aquelas que se dirigem ao Criador, ou à sua ausência, em princípio, são campos abertos a todo o tipo de tolerância, diálogo e confraternização dos contrários. A própria matéria estética, sendo em si uma formação libertadora, dispensa a agremiação e a submissão, e processa-se numa permanente fuga ao doutrinário. E não vale a pena referir como as Religiões, incluindo a humaníssima Religião Cristã, se servem, mais que não seja, em última instância, dos pressupostos contrários. O que o Papa Bento XVI veio fazer – se não há aqui um abuso de interpretação – foi desmantelar a distância entre a criatividade e o dogma. O que me pareceu o seu texto conter foi uma mensagem de aproximação entre todos aqueles que trabalham no domínio das realidades imateriais e transfiguradoras, desde que impulsionados pelo ideal do bem e da verdade, a que de forma contígua denominou por Beleza – “Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza”.

Parece que já o teria dito sensivelmente da mesma forma, em Novembro passado, na Capela Sistina, dirigindo-se aos artistas. Eu diria que, neste caso, dirigindo-se a uma assistência bem mais heterogénea, o significado dessa interpelação por via desse estado comum ao religioso e ao cultural, ainda alarga mais o seu alcance. Sem querer extrapolar indevidamente, entendo que essa foi a forma de chamar para dentro da mesma casa aqueles para quem o próprio sentido da Beleza não passa dum artefacto dispensável quando se fala de cumprimento e obediência. Ora chamar os criadores e as pessoas da Cultura para o campo que lhes é próprio não é difícil. De algum modo, eles nunca saíram de lá. Mas fazer os cristãos aceitarem que, entre crentes e não crentes, a diferença existe, sem qualquer tipo de desqualificação dos segundos, isso sim, será mais difícil. Só que este tipo de convite tem por base uma concepção dos homens que vai para além do religioso, assenta no filosófico. Assenta na percepção de que cada homem é um milagre, e cada vida humana tem o seu caminho. Corajoso. Eu ousaria dizer que Bento XVI, neste aspecto, e naquelas circunstâncias, foi muito mais longe do que o lugar em que se encontra a sua Igreja.

Eu sei que Bento XVI e o Vaticano afligem-se com uma censura que, desde há mais de um século, separa os códigos das obras de Arte Contemporânea dos factores trabalháveis da Religião. Mas não creio ter visto no seu discurso uma manobra de sedução para que os artistas, os actores, os cantores, os poetas venham a ter como tema o Nascimento ou a Paixão de Cristo, por encomenda. Vi, muito mais, um convite de convívio sob o mesmo telhado entre os que crêem em Cristo e os que não crêem para se aproximarem e criarem uma Humanidade melhor, embora com projectos distintos. Creio ter entendido que o antigo Cardeal Ratzinger terá querido dizer que a Religião Cristã é, ela própria, um projecto de Beleza. E nada mau que isto, ou algo muito próximo, tenha sido proferido nesta ocasião, entre nós.

De certa forma, com este discurso, Bento XVI conseguiu associar-se ao oposto daquilo a que o filósofo Franz Rosenweig denominou como “os tiranos do Reino de Deus”, aqueles que pretendem expulsar o mal do passado, do presente e do futuro, de si mesmos e dos outros, da sociedade e dos estados. O seu discurso – se bem o entendi, repito – aventurou-se a chamar para um ponto de convergência imaginário todos aqueles que sabem que por mais que se faça têm de lidar com o mal. E para tanto apenas aprenderam a usar a Arte, isto é, os seus projectos individuais de beleza.

Lídia Jorge, escritora

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top