Do Movimento Litúrgico à Reforma Litúrgica

D. José Manuel Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda

O Movimento Litúrgico teve o seu natural desenvolvimento por toda a Europa. O início do Movimento Litúrgico, em Portugal, pode datar-se no I Congresso Litúrgico Português, realizado em Vila Real de 17 a 19 de junho de 1926. Tanto o mosteiro de Singeverga como o Seminário Maior dos Olivais foram dois centros importantes do Movimento Litúrgico. Todo este movimento não aconteceu na paz. Pelo contrário, não faltaram no interior da Igreja, discussões, ataques, bispos céticos e com muitas reservas por todo este desenvolvimento litúrgico.

A Encíclica “Mediator Dei” de Pio XII (20.11.1947)[1] é considerada a “Magna Carta do Movimento litúrgico”. Sem dúvida, as reformas de Pio XII contribuíram para uma nova teologia litúrgica, e podemos até acrescentar que o II Concílio do Vaticano desembocou numa teologia da liturgia graças às bases destas reformas lentas e amadurecidas. Todos se davam conta do crescendo da reforma litúrgica e toda a Igreja se abria, naqueles anos, às riquezas do mistério pascal, centro da vida da Igreja e de cada cristão.

O I Congresso Internacional de Pastoral litúrgica de Assis ficou célebre pelas palavras proferidas pelo Papa Pio XII, no Discurso final, na sala das Bênçãos do Vaticano, em 23.09.1956: «o Movimento Litúrgico apareceu como um sinal das providenciais disposições divinas no nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo na sua Igreja para aproximar ainda mais os homens aos mistérios da fé e às riquezas da graça, que provêm pela participação ativa dos fiéis na vida litúrgica»[2], e, ainda pelas palavras de J. A. Jungmann, SJ: «A chave da história da liturgia é a pastoral»[3].

Quando o Beato João XXIII anunciou a convocação do Concílio não estava, certamente, nos seus pensamentos o tema litúrgico. Todavia, entre os primeiros inquéritos e entre as 9.384 propostas, 1.855 delas, ou seja, cerca de 20%, referiam-se à liturgia. Este era um sinal do desejo de uma renovação. O grande número de respostas vindas da Secretaria Geral da comissão antepreparatória foi lida como sinal de interesse pelos temas litúrgicos presente nos futuros Padres conciliares.

No Motu proprio Rubricarum Instructum, de 25 de julho de 1960, dizia João XXIII: «depois de ter examinado por muito tempo o assunto, decidimos que no Concílio Ecuménico se devem propor os grandes princípios “altiora principia” para a reforma litúrgica geral»[4].

A promulgação da Sacrosanctum Concilium acontece a 04.12.1963, 400 anos depois da conclusão do Concílio de Trento (04.12.1563). Pela primeira vez na história da Igreja, um Concílio Ecuménico tratou colegialmente o tema litúrgico em geral.

A reforma litúrgica insere-se exatamente na quadrupla finalidade geral do Concílio: «fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições suscetíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja»[5].

Por isso, os grandes princípios da reforma litúrgica foram:

a) aumentar a vida cristã;

b) adaptar as instituições eclesiais ao nosso tempo;

c) promover a união dos cristãos (ecumenismo);

d) propor a todos os homens o convite de entrar na Igreja (missão);

e) realizar a nobre simplicidade e a clareza na brevidade dos ritos.

O sujeito da ação litúrgica é o povo de Deus. A valorização das Igrejas locais foi outro aspeto saliente, bem como a recentralização da Palavra de Deus na liturgia.

Como qualquer reforma eclesial verdadeiramente incisiva, que penetra no âmago da vida cristã, a reforma litúrgica suscitou incompreensões e pôs a claro várias formas de incoerência. Em geral, a reforma litúrgica foi bem acolhida na Igreja de Rito Romano. Verificou-se que a liturgia viveu, depois dos primeiros anos da reforma litúrgica, uma fase de crise, dominada pela perda de entusiasmo, desencantada por não obter rapidamente os resultados que se esperavam em relação aos generosos esforços iniciais. Talvez se esperasse desta reforma uma “utilidade” pastoral, que não lhe correspondeu. A liturgia, de facto, não é um instrumento de pastoral, mas ação pastoral própria da Igreja no seu núcleo e na sua fonte, isto é, o lugar de encontro santificante dos homens e glorificante do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo[6].

A reforma da liturgia não é um movimento isolado. Esta interage com o movimento bíblico, o movimento ecuménico, o renovado vigor missionário e com a investigação teológica antes e depois do acontecimento conciliar. A renovação litúrgica aparece, em certo sentido, como o padrão e a condição para se porem em prática os ensinamentos conciliares.

Entretanto em 1985, aquando da celebração do Sínodo extraordinário dos Bispos sobre o balanço dos 20 anos do Concílio Vaticano II, os Padres sinodais afirmaram claramente que: «a renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar. Ainda que tenha havido algumas dificuldades, em geral ela foi acolhida pelos fiéis com alegria e com fruto»[7].

Esta renovação da liturgia não pode limitar-se às cerimónias, aos ritos ou aos textos, mas pretendeu conduzir àquela tão desejada participação ativa e consciente, felizmente aumentada depois do Concílio.

Na realidade, «para muitos, a mensagem do Concílio do Vaticano II foi percebida, acima de tudo, através da reforma litúrgica»[8]. No entanto, o Papa Bento XVI recorda: «a Liturgia da Igreja vai além da própria “reforma conciliar”, cuja finalidade não era principalmente mudar os ritos e os textos, mas sim renovar a mentalidade e colocar no centro da vida cristã e da pastoral a celebração do Mistério Pascal de Cristo. Infelizmente, talvez, também da nossa parte, Pastores e peritos, a Liturgia foi acolhida mais como um objeto para reformar do que como um sujeito capaz de renovar a vida cristã»[9]. A renovação da Liturgia e a renovação de toda a vida da Igreja estão intimamente relacionadas.

D. José Manuel Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda

NOTAS:

[1] Cf. PIO XII, «Mediator Dei», AAS 39 (1947) 521-600.

[2] PIO XII, «Alocução conclusiva aos participantes do Congresso Internacional de Liturgia Pastoral de Assis», AAS 48 (1956) 712.

[3] Cf. J. JUNGMANN, «La pastorale come chiave della storia della liturgia», in Eredità liturgica e attualità pastorale, Edizioni Paoline, Roma 1962, 556-574.

[4] JOÃO XXIII, «Motu proprio “Rubricarum instructum”», in C. BRAGA-A. BUGNINI, Documenta ad instaurationem liturgicam spectantia (1903-1963), Edizioni liturgiche, Roma 2000, 1017.

[5] SC 1.

[6] Cf. T. GARRIGA, «La sacra liturgia, fonte e culmine della vita ecclesiale», in R. FISICHELLA (ed.), Il Concilio Vaticano II, 59.

[7] Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos 1985, 4, in Viver o Concílio, Editorial A.O., Braga, 1986, 46.

[8] J. PAULO II, «Vicesimus quintus annus 12», in EDREL, 748.

[9] BENTO XVI, Discurso à comunidade do Pontifício Instituto Litúrgico do Ateneu de Santo Anselmo no 50º da fundação, 06 de maio de 2011.

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