Discurso do presidente da CEP na abertura da Assembleia Plenária

A visita pastoral do Santo Padre a Portugal, no passado mês de Maio, trouxe à Igreja um novo ardor evangélico, de confirmação e de renovação da nossa missão. À sociedade portuguesa trouxe apreço cordial e a todos deixou mensagens de ânimo, solidariedade e esperança. Neste sentido, expressamos ao Papa Bento XVI, por intermédio do Senhor Núncio Apostólico, a quem fraternalmente saudamos, a nossa gratidão por tudo quanto aconteceu em Portugal e o compromisso de fidelidade ao sucessor de Pedro, na construção de uma Igreja e sociedade melhores. Este acontecimento emerge particularmente em «tempos sombrios» (Bertolt Brecht) que, para além da turbulência presente, confirmam a necessária mudança de paradigma pastoral e de uma nova ordem mundial. Acredito que a conjuntura actual abre novas hipóteses e novos caminhos para levar o Evangelho ao mundo e para a evangelização da própria Igreja.

 

I – Igreja, que dizes de ti mesma?

Nos inícios dos anos 70, na esteira do Concílio Vaticano II, o teólogo Joseph Ratzinger expunha profeticamente as características da Igreja de Jesus Cristo no séc. XXI: «Uma Igreja de crentes… com sacerdotes que não sejam “funcionários sociais”, mas homens que, a partir de Deus, se põem à disposição de outros homens… com novas formas ministeriais, e consagrando cristãos experimentados que permaneçam na sua profissão… Uma Igreja que terá perdido muitos, mais pequena… sem privilégios… comunhão de pequenas comunidades… às quais só se pertenceria por uma decisão livre… Uma Igreja que deverá começar completamente de novo» (1).

No seguimento desta leitura, e com a responsabilidade que nos toca, não podemos fugir hoje a algumas interrogações. Que Igreja somos neste início de século? Que caminhos já percorridos mas com metas ainda não alcançadas? Como percorrer, de forma sempre nova, o caminho de Emaús onde Ele nos explica o sentido das Escrituras? Como fazer do momento actual um impulso profético que coloque a Igreja no espaço público, para que «viva no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas»(2)? Que sinais dos tempos são estes que estão a pedir respostas colegiais, coordenadas e participativas de toda a Igreja de Portugal? Que testemunho e esperança temos para dar à Igreja e à sociedade portuguesa?

Estas e outras interrogações fazem-nos repensar como transmitir o Evangelho de Jesus neste nosso século. As transformações do mundo vieram redefinir as fronteiras da acção pastoral, colocando em causa uma pastoral eminentemente enquadrativa, liderada pela figura do pároco. Diante de uma pluralidade de transformações, contextos e mudanças, a Igreja vê-se na necessidade de voltar o seu olhar e o seu coração para a pedagogia do Evangelho. De gerar uma evangelização que conduza ao encontro com Cristo, fraternalmente aberta e actuante, que toque na verdade de cada situação e de cada pessoa.

Uma pastoral radicada na «construção de caminhos de comunhão», na edificação de um corpo orgânico, geradora de consciências livres na opção por Cristo e pela sua Boa Nova (3). Assim, padres e leigos, na clareza e distinção de ministérios, tornam-se co-responsáveis e fiéis cooperadores do Espírito Santo na transmissão do Evangelho a todos os homens e mulheres. Propor o Evangelho é o coração de toda a Pastoral. É aqui que se joga a adesão a um quadro de valores originalmente cristãos, compreensível e acessível a todos os crentes, porque a missão da Igreja não é «falar primeiramente de si mesma, mas de Deus» (4), a si própria, e ao mundo (5). Deste modo a Igreja oferecerá o perfume da manhã de Páscoa no seio das suas comunidades e suscitará vida, onde ela é débil e precária (6).

 

II – Igreja, que esperam os homens de ti? Urgência de uma síntese pastoral

Diante da necessidade de uma síntese eclesiológica onde Cristo preside à comunhão da Igreja, urge fazer uma síntese pastoral, segundo os critérios da pedagogia de Jesus, que vá para além das questões organizativas. Uma síntese baseada no lugar teologal da Igreja, centrada na experiência pessoal e comunitária de fé em Cristo (7) e no serviço fraterno a todas as pessoas.

Uma síntese sem simplismos e imediatismos, mas profunda e acutilante, que nos coloque na senda de uma renovação pastoral sustentada e alargada à participação decisiva de todos (clero, leigos, movimentos, ordens e congregações religiosas). Talvez precisemos de rever os metros quadrados da nossa acção para partilharmos com confiança as alegrias, os anseios e tristezas da Igreja, das comunidades e das pessoas de hoje, como esperanças e interrogações de cada um.

Precisamos de acções mais sistemáticas, colegiais e concertadas para uma evangelização forte e intensa, personalizada, que vá para além do púlpito e das formas tradicionais de evangelização (8). O mundo necessita de uma Igreja viva, plural, na diversidade de pessoas e carismas, que seja espelho vivo da comunhão trinitária; de uma Igreja amor, alegre, humilde, desinstalada das suas certezas, que saiba partilhar com generosidade; de uma Igreja missionária que testemunhe seriamente, convoque e provoque os seus membros para as bem-aventuranças do Reino de Deus. Sintetizando, diante dos sinais dos tempos, precisamos de colocar permanentemente e sem subterfúgios a pergunta: Igreja, que esperam de ti os homens de hoje?

 

III – Formar uma memória cristã no quotidiano da vida

 

Na fidelidade ao Evangelho, urge formar cristãos que queiram viver a partir de uma experiência exigente de encontro e de seguimento do Mestre. Cristãos com rasgos de esperança, capazes de abrirem caminhos novos e criativos nos diversos âmbitos pastorais face à nebulosa existencial e de assentarem a sua fé no encontro pessoal e quotidiano com Cristo.

É neste sentido que o Santo Padre constata que o momento actual «exige um novo vigor missionário dos cristãos, chamados a formar um laicado maduro, identificado com a Igreja, solidário com a complexa transformação do mundo. Há necessidade de verdadeiras testemunhas de Jesus Cristo, sobretudo nos meios humanos onde o silêncio da fé é mais amplo e profundo: políticos, intelectuais, profissionais de comunicação […]. Em tais âmbitos, não faltam crentes envergonhados que dão as mãos ao secularismo, construtor de barreiras à inspiração cristã»(9).

A constatação generalizada da débil formação cristã dos leigos coloca-nos algumas questões para reflexão. Que memória cristã estamos a construir e a transmitir às gerações vindouras? Quais as razões de algum laicado imaturo ao nível da fé? Como narramos e testemunhamos o Evangelho? Não estaremos nós ainda num paradigma eclesial demasiado clerical e jurisdicista? Que gerações estamos a formar com a catequese e a educação cristã actual? Que espaço e acompanhamento temos dado aos novos movimentos, ministérios e grupos apostólicos na vida da Igreja? Não estaremos, porventura, excessivamente instalados no ritualismo sacramental e intra-eclesial? Falta‑nos o elemento expectativa (10) diante das grandes questões da vida e da morte?

Torna-se, por isso, premente olhar para a iniciação cristã, os seus agentes, formas e conteúdos, de modo que a Igreja, sob a acção actuante do Espírito Santo, faça discípulos conscientes da sua fé, testemunhas e seguidores expectantes da salvação de Deus. Isso exigiria adoptar o catecumenado adulto como modelo de iniciação à fé cristã (11), de modo a fazer discípulos que, na sua liberalidade, saibam ler, interpretar, agir e testemunhar os acontecimentos da história à luz da Palavra eloquente de Deus. Isso colocará o Evangelho no centro da vida das comunidades cristãs, numa interpelação permanente à sociedade, à cultura, à política, ao trabalho, às artes, à economia e aos grandes areópagos da comunicação (12).

Necessitamos de um laicado comprometido e idóneo, devidamente preparado e em profunda comunhão eclesial, para decidir, assumir, agir, rezar e evangelizar intra e extra eclesialmente; profundamente enraizado na meditação da Palavra, nas fontes clássicas e contemporâneas da espiritualidade cristã, na história e na arte cristãs, na doutrina teológica e social da Igreja, na leitura e na imitação da vida dos grandes santos e santas da Igreja e no cumprimento da caridade cristã. Assim, o mundo clerical sentirá a mudança como uma necessidade interior e não apenas como uma atitude sociológica face a um mundo em transformação. Comunidades formadas e preparadas interpelarão a vida sacerdotal na condução espiritual do Povo de Deus.

Não podemos ficar por uma renovação epidérmica, superficial, sob o risco de ficarmos anestesiados e combalidos! Espera-nos uma mudança radical de atitudes e comportamentos para que esta renovação chegue a tempo, sem se fechar no imediatismo e na voracidade do tempo. Faz-nos falta compreender que a renovação está no testemunho (13) que torna credível e apetecível o anúncio de Cristo, livre da banalidade e de preferências triviais, de gostos litúrgicos superficiais e comerciais, que colocam as pessoas e comunidades à margem do encontro silencioso e pessoal com o Belo Pastor e fora da autêntica comunhão eclesial.

 

IV – Igreja que tens a dizer ao mundo? Um apelo à Verdade

É necessário que a Igreja fortalecida pela comunhão dos seus membros se sinta enviada até aos confins da terra. Liberta de todo o tipo de amarras, no respeito pela diferença, sem nada impor, proporá o Evangelho como acontecimento feliz e libertador. Uma proposta que tem como conteúdo a pessoa de Jesus Cristo e todo o seu acontecimento; como protagonista a voz do Espírito Santo que nos chama e envia quotidianamente a cada lugar e a cada pessoa (14).

Reconhecemos que o Estado e o poder político não são os únicos responsáveis no governo da nação. O espírito de missão e de humanidade impõe que todas a forças e todos os quadrantes colaborem em ordem ao bem comum. A presença de leigos cristãos na vida política, cultural, económica, financeira, na comunicação social, será certamente um contributo em ordem à humanização da vida pública. Um laicado, em sintonia com o Evangelho e com a doutrina social da Igreja, exercerá certamente uma força positiva na resolução dos problemas do nosso país. O sentido de responsabilidade pública e de participação na vida democrática exigirá líderes com propostas novas e sérias que visem promover a equidade e a coesão da sociedade portuguesa.

Pela missão que nos cumpre de anunciar, não podemos deixar de evidenciar também a nossa perplexidade pela falta de verdade nos centros de decisão da gestão pública, pela ausência de vontade em solucionar os desafios actuais e pela ânsia obsessiva do lucro que conduz à desumanização da vida. Inverdade frequentemente resultante de querelas pessoais e de jogos político-partidários pouco transparentes, que aprisionam os líderes aos interesses instalados nas estruturas público-privadas. A comunidade humana não pode pactuar com a teoria dos consensos políticos mínimos que geralmente não resultam em soluções sustentadas. O apelo à justiça e à igualdade surge esvaziado de conteúdo porque sem resultados práticos. As novas gerações não têm expectativas em relação ao futuro, quer pela falta de trabalho, quer por falta de horizontes para a vida. Cada vez mais os centros sociais e lares se enchem de pessoas que já não têm lugar à mesa das suas famílias, tanto por razões de ordem laboral e económica, como pela banalização dos laços familiares. Surgem novas formas de liberalização e de imposição forçada de uma cultura da morte sem precedentes e minimalista, em que as propostas conduzem tendencialmente para a desumanização das relações humanas.

Neste contexto de incerteza, o apelo da Igreja à «verdade na caridade» (Bento XVI) faz todo o sentido. O sinal distintivo da Igreja, com todos os seus membros e estruturas, é estar presente nos lugares onde a vida do próximo é precária e banalizada, maltratada e escarnecida. O anúncio expectante dum tempo novo traz necessariamente consigo a denúncia e a proposta de acções concretas. A verdade é um imperativo colocado a todos, é um acto de honestidade, sobretudo ao nível dos centros de decisão dos diversos cargos políticos, económicos, sociais e culturais. Aí falta, por vezes, uma verdade objectiva que é relativizada em detrimento do prestígio e do protagonismo pessoal. Sem o testemunho nem os exemplos das lideranças, como se poderá exigir sacrifícios às pessoas? Não serão necessários esforços de concertação e de mobilização na procura de um modelo social que perdure e dê esperança à geração presente e futura?

A Igreja, com os seus leigos, clero, estruturas, voluntários e pessoas de boa vontade, continuará a anunciar a Páscoa do Senhor, na expectativa de cumprirmos o mandato do amor de Cristo, de realizar as bem-aventuranças no quotidiano das pessoas, nos locais onde as estruturas do Estado não chegam ou desistem de chegar. Com todas as dificuldades e entraves que surjam, nas nossas paróquias ou dioceses, procuraremos realizar o Evangelho e marcar presença onde a vida humana é desrespeitada e debilitada por falta de bens e por ausência de sentido para a vida (15). Cabe-nos a responsabilidade apostólica de propor com desassombro a beleza do Evangelho de Cristo aos crentes e à humanidade e de semear a possibilidade de uma vida feliz para todos.

Na presente conjuntura, não posso deixar silenciado o fundamental direito da liberdade de ensino, consignado na Constituição da República Portuguesa, o que significa ser imperioso respeitar o direito que têm os pais de escolher para seus filhos a Escola que julgarem melhor. Todas as possíveis tentativas de estatização, que pretendam conquistar o terreno do ensino particular e cooperativo, nomeadamente à Igreja, violam este princípio fundamental de uma sociedade livre e democrática. Além disso, estando nós em tempo de restrições económicas, seria um desperdício e esbanjamento imperdoáveis desproteger as Escolas particulares que poupam ao Estado verbas avultadíssimas. Confiamos firmemente que as conversações em curso com o Ministério da Educação cheguem a bom porto, para bem dos alunos, de seus pais e do País.

Passando a sociedade portuguesa por particulares tempos de crise e estando em processo de efectivação duras medidas de austeridade, apelamos às instâncias governativas para que as classes mais desfavorecidas sejam menos penalizadas e mais ajudadas. Apelamos também à partilha e à solidariedade de todos, sabendo que a sociedade espera gestos concretos da Igreja neste campo.

Termino recordando, com saudade e oração, D. Armindo Lopes Coelho e D. Tomaz Pedro Barbosa Silva Nunes. Com eles, e muitos outros que nos antecederam, sentimo-nos ancorados na fé e sem medo destes novos tempos. Não esquecemos também os nossos irmãos no episcopado que estão doentes e seguem os nossos trabalhos em espírito de comunhão eclesial. Que a todos a alegria pascal contagie em graça e sabedoria fraternal.

Fátima, 2010-11-08

† Jorge Ferreira da Costa Ortiga,

Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

(NOTAS)

1 -Joseph RATZINGER, Fe y futuro, Sígueme, Salamanca 1972.

2 – JOÃO PAULO II, Christifideles Laici, nº26.

3 – Philipe BACQ, Vers une pastorale d’engendrement, in AA.VV., Une Nouvelle chance pour l’évangile. Vers une pastorale d’engendrement, ed. Lumen Vitae, Bruxelas 2004.

4 – Bento XVI, Discurso aos Bispos da Conferência Episcopal Portuguesa por ocasião da visita Ad Limina Apostolorum, 10 de Novembro de 2007.

5 – «O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco. Quanto à nossa comunhão, ela é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo» (Jo 1,3).

6 – «Achava-se ali, diante dele, um hidrópico. Jesus, dirigindo a palavra aos doutores da Lei e fariseus, disse-lhes: “É permitido ou não curar ao sábado?” Mas eles ficaram calados. Tomando-o, então, pela mão, curou-o e mandou-o embora» (Lc 14, 1-6).

7 – «Lembra-te de que Jesus Cristo, descendente de David, ressuscitou dos mortos, segundo o meu Evangelho, pelo qual eu sofro […] Mas a Palavra de Deus não está encadeada. Por isso, tudo suporto por causa dos eleitos, para que obtenham a salvação que está em Cristo Jesus e a salvação eterna» (2 Tim 2, 8‑10).

8 – BENTO XVI, Homilia na Avenida dos Aliados, Porto, 14 de Maio de 2010: «Temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro: seria morrer a prazo, enquanto presença da Igreja no mundo, que aliás só pode ser missionária».

9 – Bento XVI, Discurso aos Bispos da Conferência Episcopal Portuguesa, por ocasião da visita Ad Limina Apostolorum, 10 de Novembro de 2007.

10 – “Acredito que a resistência ao cristianismo vem em grande parte do facto de os cristãos, abertamente ou não, erguerem a pretensão de possuir Deus e terem assim perdido o elemento de expectativa.” (Paul Tillich).

11 – Cf. Cartas Pastorais de 1983.

12 – CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Carta Pastoral «Como eu vos fiz, fazei vós também» – Para um rosto missionário da Igreja em Portugal, nº 26: «é urgente saber aproveitar todas as oportunidades, mas também saber provocá-las, e lançar mãos de capacidades e aptidões, mas também saber cultivá-las, para oferecer o Evangelho ao nosso mundo».

13 – BENTO XVI, Discurso no encontro com os bispos de Portugal, Fátima, 13 de Maio de 2010: «A fé católica muito dificilmente poderá tocar os corações graças a simples discursos ou apelos morais e menos ainda a genéricos apelos aos valores cristãos […]. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho dele».

14 – «Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (Act 1,8).

15 – Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, nº 9: «A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer […], mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação».

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