Descobrir a beleza e a alegria da vocação cristã

Nota Pastoral de D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima Caríssimos diocesanos, irmãos e irmãs no Senhor: Antes de mais quero renovar a saudação fraterna e afectuosa que vos dirigi na minha tomada de posse, particularmente aos doentes, aos jovens e às crianças: “O Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz na fé” (Rom 15, 13). Agradeço, mais uma vez, o caloroso acolhimento com que me recebestes e que continuo a experimentar nas visitas às paróquias, como também as muitas cartas recebidas, testemunhos sinceros da vossa simpatia e amizade. A todos e a cada um, o meu muito obrigado! Na primeira saudação que vos fiz chegar a quando da minha nomeação, apresentei-me a vós com o lema do meu ministério “servidor da vossa alegria”. Esta colaboração na vossa alegria – que é a alegria do Evangelho – leva-me a escrever-vos esta carta pastoral para vos ajudar a contemplar, com os olhos cheios de deslumbramento e o coração cheio de gratidão, a beleza e a alegria da vocação cristã. A razão da carta é o início do ano pastoral 2006-2007 que é dedicado à Pastoral das Vocações na Igreja, com acento particular nas vocações ao sacerdócio, sob o lema bíblico: “Não fostes vós… fui Eu que vos escolhi” (Jo 15, 16). O tema situa-se na continuidade do ano transacto dedicado ao acolhimento, a partir da frase de Jesus à Samaritana: “Se conhecesses o dom de Deus…” (Jo 4, 10). Esta palavra de Jesus é um convite a ir mais além de nós mesmos, a encontrar o melhor de nós próprios, acolhendo o dom de Deus que é Jesus Cristo e a vida nova e bela que Ele nos oferece. Trata-se pois de cada um procurar compreender-se a si mesmo, à sua vida e ao seu projecto de vida à luz de Jesus Cristo: a que me chama o Senhor? Qual é o dom da minha vocação dentro do grande projecto da salvação de Deus para os homens? Quando se perde isto do horizonte surge a crise de vocações à vida matrimonial, ao sacerdócio e à vida religiosa que hoje sentimos de modo preocupante. 1. Novo contexto vocacional hoje A crise das vocações ao sacerdócio ou à vida religiosa não pode ser compreendida de um modo isolado do contexto cultural da nossa época nem do contexto da vivência da fé nas nossas comunidades. É antes de mais uma crise cultural. Hoje sente-se a falta de uma “cultura vocacional” que se reflecte em vários âmbitos: crise da vocação ao matrimónio, à vida política, à vida sindical, à vida associativa. Isto é derivado da cultura reinante da incerteza e da confusão causada pelo relativismo e pelo vazio de ideais, de valores, de referências e modelos fortes. Acresce ainda a cultura da distracção, cada vez mais invasiva e evasiva, que perde de vista e até sufoca as interrogações sérias acerca do sentido da vida. Mais, sofre-se hoje de uma orfandade educativa nas famílias e nos centros de educação. Quantos abortos vocacionais – que impedem o desabrochar da semente da vocação – por causa do vazio educativo! Todo este clima suscita e alimenta a cultura da indecisão: os jovens têm receio e medo de tomar opções e assumir compromissos fortes, exigentes e duradoiros. Basta pensar na actual crise da opção matrimonial que, a meu ver, não é menos grave do que a crise das vocações ao sacerdócio ou de consagração. É dramático tudo isto que leva um jovem a privar-se de uma das realidades mais belas da vida: formar uma família com um vínculo de amor uno, fiel e para sempre. Esta crise cultural repercute-se também na Igreja. Em tempos de cristandade, a vocação, tal como a fé, despertava e transmitia-se como que por osmose ou contágio do ambiente cristão das famílias e da figura e do estatuto social do padre. Hoje, num mundo em constante mudança e pluralista, a vocação, tal como a fé, requer uma interpelação clara por parte da comunidade cristã e uma opção consciente e madura dos destinatários. Acontece, porém, que nas nossas comunidades cristãs reina uma amnésia vocacional. A maior parte dos nossos cristãos pensa que a questão das vocações não lhes diz respeito; é assunto do bispo e dos padres. A crise vocacional é, em última análise, crise de vivência e interpretação banal da fé, privada de toda a beleza, frescura, encanto, paixão, alegria e entusiasmo por Jesus Cristo e pelo evangelho, privada do sentido de responsabilidade e de doação a Deus e aos outros. Esta reflexão serve para compreender o contexto da crise vocacional. Mas não ajuda a solucioná-la dizer que acontece o mesmo na vida política e sindical, nem ficar nas lamentações acerca do nosso mundo. A crise representa um desafio em ordem a assumir com novo ardor a pastoral vocacional e a encontrar novos caminhos. O que aqui está em jogo é, sobretudo, uma experiência de fé que leve a descobrir a novidade e a beleza do encontro com Jesus Cristo. 2. A Beleza da vocação cristã 2.1. “E Deus viu que tudo era muito belo” (Gen 1,31): Toda a vida é vocação Quando contemplamos a nossa vida à luz da fé no mistério da Criação, tomamos consciência de que “não somos o produto do acaso irracional e sem sentido da evolução. Cada um de nós é fruto dum pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um é amado, cada um é necessário.” (Bento XVI) O amor criador de Deus é o início de cada vocação. Ele cria-nos com dons, talentos e capacidades que somos chamados a desenvolver para a nossa realização pessoal e para o aperfeiçoamento do mundo. Chama-nos a colaborar com Ele no projecto criador e salvador, para tornar o mundo bom e belo. A vida humana não é pois um acaso nem um destino cego. É uma obra-prima do amor criador de Deus e traz inscrito dentro, em si mesma, um chamamento ao amor. Não é uma aventura solitária, mas diálogo, dom de Deus que se torna tarefa e missão para nós. Não vivemos ao acaso nem por acaso. O homem não está só no mundo: nem no princípio, nem no meio, nem no fim da vida e da história. Deus é o seu companheiro de caminho e este caminho abre à vida verdadeira e plena, boa, bela e feliz. Cada dia é-nos dado para responder à nossa vocação de criaturas de Deus, como um modo de conceber e projectar a nossa vida. Em cada pessoa há um dom original de Deus que espera ser descoberto, desenvolvido para dar frutos. A busca do sentido da vida é um eco da “vocação” de Deus. 2.2. “Fala, Senhor; o teu servo escuta” (1Sam 3,10): A vocação como diálogo Mas Deus chama o homem não só à vida e ao seu desenvolvimento; chama-o também, de novo e sempre, na sua história a colaborar com Ele numa história de salvação e não de perdição, de graça e não de desgraça, formando um povo que acolhe o dom da salvação. O povo de Deus – outrora Israel, hoje a Igreja – é um povo de chamados à fé e à salvação, a responder e corresponder à Palavra do Senhor. A história de Deus com os homens é uma história de vocações. Através da sua Palavra, Deus chama e envia alguns (patriarcas, profetas…) a realizar determinada missão. Uma amostra exemplar é a vocação de Abraão, a quem Deus chamou para dar início à história particular da salvação, formando um povo, e a confiar somente na Palavra, acolhida na fé e na esperança. Quando Deus chama, espera uma resposta. Isto é claro na vocação de Samuel (1Sam 3), que responde com a sua disponibilidade pronta: “Eis-me aqui. Fala, Senhor, que o teu servo escuta”. Assim a história de cada homem, embora nos apareça como uma pequena história, é sempre parte integrante e inconfundível duma grande história da salvação, que vem de longe e leva longe e que tem o seu momento culminante em Jesus Cristo. 2.3. “Vinde e vede” (Jo 1,39): A vocação como encontro com Cristo De facto, em Jesus, Filho de Deus feito homem, o Deus vivo, no excesso do seu amor, entra em pessoa na nossa história, vem ao nosso encontro, aproxima-se de nós, torna-se nosso amigo, partilha connosco o mistério do seu amor, para que tenhamos vida em abundância, vida verdadeira, nova e eterna. Jesus traz-nos a Boa-Nova de que somos amados por Deus como filhos; e dá-nos o Espírito Santo no qual podemos acolher Deus como Pai e os outros como irmãos. O Filho é enviado pelo Pai para chamar os homens a esta comunhão divina e fraterna. O convite de Deus chega até aos homens nas palavras, nos gestos, nos sinais de salvação de Jesus. Não é uma fórmula ou uma doutrina que nos salva, mas a Pessoa viva de Jesus. Por isso, não existe uma passagem do Evangelho, um diálogo ou encontro que não tenha um significado vocacional: um convite – chamamento de Jesus a segui-Lo, que põe o homem diante da interrogação fundamental: que quero fazer da minha vida? Qual o meu caminho? É verdadeiramente iluminante a narração da vocação dos primeiros discípulos de Jesus no Evangelho segundo S. João 1, 35-39. O amor divino é o acontecimento de um encontro que muda a vida, a experiência de uma hora inesquecível que revive, de novo e sempre, no coração de quem aceita entregar-se a este amor em Jesus. Quando João Baptista indica Jesus como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – isto é, como Salvador do mundo –, os dois (João e André) não hesitaram em segui-Lo, sem dizer nada. E Jesus faz-lhes uma única pergunta: “Que procurais?” Pode parecer uma pergunta banal, mas ela vai ao fundo da pessoa, como quem diz: o que vos move? Que anseios estão no interior do vosso coração? De que andais à procura na vida? Que vos interessa acima de tudo? E que esperais de Mim? É pois uma pergunta cheia de sentido, um convite a olhar-se dentro, a advertir o que há de mais profundo em nós. Por sua vez, eles respondem com outra pergunta: “onde moras?” que exprime o desejo de ficar com Ele. Morando juntos, convivemos, compreendemo-nos, partilhamos algo em comum, sentimo-nos da família. Eles compreenderam pois que seguir Jesus é encontrar a verdadeira morada da própria vida. A resposta do Mestre é um convite a confiar e a fazer uma experiência de vida com Ele: “vinde e vede”. E assim fizeram. É tão grande a impressão daquele encontro que vai marcar para sempre a sua vida, que S. João recorda a hora precisa, típico da memória de um grande amor: “era a hora décima” que, para os hebreus, significava a hora das grandes decisões da vida. A vocação é o encontro com Alguém, não com alguma coisa; é a recordação de uma hora que muda a vida quando se aceita estar com Ele e viver d’Ele, reconhecendo-O como “meu Senhor e meu Deus”. “O encontro com Jesus abre um novo horizonte e imprime um rumo decisivo à vida” (Bento XVI), dá origem a uma existência nova na comunhão com Cristo. 2.4. “É belo estarmos aqui” (Mat 17,4): A vocação como vida bela em Cristo A vida em comunhão com Cristo é uma experiência de beleza a saborear e a testemunhar, tal como nos é dado contemplar no mistério da Transfiguração de Jesus, no monte Tabor. É um episódio misterioso, um acontecimento de revelação em que o Filho de Deus vivo deixa transparecer a profundidade da Sua vida divina, do Seu Amor eterno, da Sua bondade que irradia em forma de luz tão intensa que transfigura o Seu rosto – expressão da pessoa – e as Suas vestes, símbolo de tudo o que é quotidiano e se desgasta. Uma experiência tão maravilhosa que extasia os discípulos e leva Pedro a exclamar: “Senhor, como é belo estarmos aqui”: é belo estar contigo, contemplar a beleza do Teu rosto, pertencer a Ti, dedicarmo-nos a Ti! E depois escutam a voz do Pai que ilumina este acontecimento: “Este é o meu Filho muito amado: escutai-O”. É o chamamento do Pai a seguir Jesus: recebei-O, acolhei-O, ponde n’Ele toda a confiança, fazei d’Ele o centro da vida, deixai-vos transfigurar por Ele. A Igreja vê na Transfiguração de Jesus o próprio caminho de transformação da existência humana. Para o cristão, é sinal e apelo da transformação baptismal: um convite a dar nova figura, novo rosto, nova beleza à vida com Cristo que nos é comunicada no baptismo. O baptismo é pois o início de todo o caminho cristão de ser filhos de Deus como Jesus. Por isso dizemos que a primeira e fundamental vocação comum a todos os cristãos é a baptismal. Nela somos chamados à santidade que é a expressão da beleza espiritual e moral da nossa vida com Cristo. Ser cristão é um modo belo de viver a vida! 2.5. “Fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16): A vocação como eleição de amor Há ainda uma palavra muito bela de Jesus, em que Ele desvela o segredo e o sentido mais profundo e último da vocação cristã: “não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos constituí para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça”. Esta frase é pronunciada num contexto em que Jesus como que entoa uma cantata ao Amor infinito do Pai dado a conhecer e partilhado pelos discípulos. E assim coloca o chamamento dos discípulos no coração do mistério, isto é, no desígnio do Amor eterno de Deus, que nos precede e acompanha, ao qual eles respondem pela aceitação da fé. Sem negar a opção pessoal dos discípulos, sublinha o primado da iniciativa de Cristo, reconhecido como Senhor da nossa vida. Na origem da vocação cristã está a iniciativa da Sua graça, do Seu amor, da Sua misericórdia, da Sua atracção. Há um Amor que está antes da nossa resposta. A vocação aparece então como um dom, uma eleição de Amor. Esta eleição não é só para eles, mas para a missão: “para que deis fruto”, através da irradiação da fé e do amor para que os homens tenham a vida eterna. Através da comunidade dos discípulos, o Filho de Deus continuará a revelar-Se e a comunicar-Se ao longo da história. A nossa vocação tem como horizonte o mundo inteiro. O chamamento do Senhor é pessoal e apostólico. 3. Vocação e vocações na Igreja Tudo o que foi dito refere-se à vocação comum a todos os cristãos. O nosso ser com Cristo pelo baptismo insere-nos na comunhão de vida íntima com Deus e na comunhão de irmãos que é a Igreja. No baptismo está pois a origem da vocação comum de todos os fiéis cristãos. Todos somos chamados a viver a nossa existência humana em comunhão com Cristo: a crescer na relação filial com Deus, no amor fraterno, na vida nova segundo o Espírito de santidade, a participar na edificação da Igreja, a anunciar e testemunhar o Evangelho no mundo. É uma vocação em ordem a realizar uma vida boa, bela e feliz com Cristo e com os outros para o mundo. 3.1. Variedade de dons e chamamentos A vocação cristã, porém, especifica-se numa multiforme variedade. Todos os baptizados são alcançados pela luz da Transfiguração, pela beleza da vida nova, todos igualmente chamados a seguir o mesmo Cristo; mas cada um, de um modo próprio, segundo os dons e os apelos de Deus nas diversas situações. O Espírito Santo alimenta a vida e a missão da Igreja com dons, carismas e ministérios diversos e complementares, que se configuram numa grande variedade de vocações. Podemos sintetizá-las em três tipos: a vocação à vida laical, ao ministério ordenado e à vida consagrada. Estas “podem-se considerar paradigmáticas, uma vez que todas as vocações particulares, sob um aspecto ou outro, se inspiram ou conduzem àquelas… Todos na Igreja somos consagrados no Baptismo e na Confirmação; mas o ministério ordenado e a vida consagrada supõem, cada qual, uma vocação distinta e uma forma específica de consagração, com vista a uma missão particular” (VC 31). Assim, a vocação dos fiéis leigos é caracterizada pelo seu compromisso cristão no mundo: na vida matrimonial, na família, no trabalho, na economia, na política, na educação…; a dos ministros ordenados (bispos, padres e diáconos) distingue-se pelo ministério de representar Cristo, Pastor que guia o Seu povo; a dos consagrados consiste na entrega total, de alma, coração e sentimentos, a Jesus Cristo, pelo caminho da pobreza, da virgindade e da obediência como testemunho profético e serviço ao Reino de Deus no mundo e à esperança do mundo novo, em que quem reina é Deus – Amor. As diversas vocações são comparáveis a raios da única luz da Beleza de Cristo que resplandece no rosto da Igreja e fazem dela um jardim embelezado com as mais diversas flores. Cada vocação nasce num contexto preciso e concreto: a Igreja, mãe e berço de vocações. Não existem vocações de primeira ou segunda categoria. Todas vêm de Deus e têm um único objectivo: anunciar o reino de Deus na história, tornar visível e testemunhar o mistério de Cristo Salvador. Numa palavra, na comunidade cristã há muitas vocações, mas uma única missão. 3.2. Necessidade urgente de sacerdotes e consagrados Todas as vocações colaboram na edificação da Igreja, Corpo de Cristo, e na obra de salvação. Mas hoje sente-se uma necessidade urgente de ministros ordenados e de fiéis de vida consagrada. Os sacerdotes, na continuidade do ministério dos Apóstolos, servem, em nome de Cristo Pastor, a fé, o amor e a esperança de todos os fiéis e das comunidades cristãs, através do anúncio da Palavra de Deus, da celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos, e da orientação da comunidade na comunhão fraterna. Os fiéis de vida consagrada, movidos pelo Espírito Santo, tendem à perfeição da caridade seguindo radicalmente a Cristo mediante os chamados “conselhos evangélicos”, dando testemunho daquele Amor único que é Deus e do serviço aos irmãos em variadas expressões. São uma riqueza inestimável para a vitalidade da Igreja! A atenção prioritária, na actual situação da nossa diocese, vai sobretudo para o ministério ordenado. Ele é a garantia permanente da presença sacramental de Cristo nos diversos tempos e lugares, sobretudo através da Eucaristia. É pois fundamental e indispensável para a vida da Igreja, da sua edificação e do seu crescimento! Neste contexto, não há dúvida de que deve ser reservada hoje uma singular e específica atenção às vocações sacerdotais. Trata-se de “um problema vital para o futuro da fé cristã”, como dizia João Paulo II. Sem vocações ao sacerdócio será mais difícil o serviço ao Evangelho e não será possível uma renovada evangelização da nossa Igreja e do nosso território. 4. Novo ardor da pastoral vocacional: da alegria de ser chamado à coragem de chamar O problema vocacional põe-se, em primeiro lugar, a cada fiel cristão: a exigência de discernir a vocação específica que Deus nos reserva na tarefa de anunciar o Evangelho, de colaborar na edificação da Igreja de Cristo e na transformação do mundo. Isto significa não só saber o que Deus quer de nós, mas também o compromisso de fazer o que Ele nos pede. É uma responsabilidade pessoal que recebe aquele que é chamado: manter sempre viva, grata e alegre a consciência da própria vocação e dar uma resposta livre, generosa e cheia de amor a Deus que chama: “Eis-me aqui; envia-me!” (Is 6, 8). Mas o problema vocacional diz também respeito a toda a vida e acção pastoral da Igreja, chamada a suscitar, discernir, acompanhar e apoiar todas as vocações na sua variedade e complementaridade. As vocações na Igreja surgem dum apelo que vem de Deus, mas que se realiza normalmente através da mediação humana, com uma pedagogia e metodologia próprias. Por isso, “é necessário estruturar uma vasta e capilar pastoral das vocações, que envolva as paróquias, os centros educativos, as famílias, suscitando uma reflexão mais atenta sobre os valores essenciais da vida, cuja síntese decisiva está na resposta que cada um é convidado a dar ao chamamento de Deus, especialmente quando este pede total doação de si mesmo e das própria energias à causa do Reino de Deus” (NMI, 46). Resulta pois que a pastoral vocacional não é um aspecto isolado, sectorial. Está vinculada à pastoral global da comunidade cristã e, particularmente, à pastoral juvenil e familiar. Trata-se duma pastoral transversal e refere-se a todas as vocações. Neste momento, quero indicar apenas alguns caminhos que me parecem elementares e de fácil concretização. 4.1. A comunidade cristã, casa e escola vocacional Suscitar vocações é uma responsabilidade de todo o povo de Deus e de cada comunidade cristã. Na Exortação Apostólica “Dar-vos-ei Pastores”, João Paulo II insiste especialmente neste ponto de que devemos começar a preparar nas paróquias um terreno fértil para que a acção de Deus se desenvolva e o Seu apelo possa ser ouvido e seguido. Para que estes primeiros passos possam ter possibilidades de sucesso é preciso estar convicto de que todos os membros da Igreja, sem excepção, têm a graça e a responsabilidade do cuidado pelas vocações” (nº 41). Toda a comunidade cristã normal deve ser, pois, por natureza, “casa e escola vocacional” que faz despertar e crescer, de modo normal, as vocações normais a partir da fé vivida e testemunhada como apelo. A casa evoca o ambiente vivencial; a escola evoca a aprendizagem, a formação. Assim, o clima de fé, oração, comunhão, alegria, maturidade espiritual, caridade e testemunho faz da comunidade o terreno propício não só ao desabrochar de vocações, mas também à criação duma cultura vocacional. Em ordem à consciencialização das comunidades e à sua maior corresponsabilidade nesta tarefa, peço ao Secretariado Diocesano da Coordenação Pastoral a elaboração de algumas catequeses que poderão ser feitas quer nas paróquias, quer a nível de vigararia, durante a Quaresma. Mas, como num jogo em equipa, há que ter animadores. Por isso, em cada paróquia ou vigararia será desejável a criação de um “Grupo de Animadores Vocacionais”. É um ministério novo que se vai configurando dentro da comunidade, ao qual se confia o mandato da animação vocacional. 4.2. Acompanhamento vocacional em cada idade É preciso animar e acompanhar vocacionalmente cada idade, desde o começo da iniciação cristã até aos anos da juventude madura, através de vários itinerários. Em primeiro lugar, os itinerários da fé. Os caminhos da pastoral vocacional são, antes de mais, os do crescimento da fé e dos seus dinamismos. Como nos adverte João Paulo II “o convite de Jesus, “vinde e vede” (Jo 1, 39) permanece, ainda hoje, a regra de ouro da pastoral vocacional. Trata-se de apresentar o fascínio da Pessoa do Senhor Jesus e a beleza do dom de si à causa do Evangelho” (VC 64). Neste aspecto há que investir energias precisas no itinerário da catequese oferecendo uma leitura vocacional da vida. Também a idade do crisma poderia ser, precisamente, a “idade da vocação” para a descoberta e o testemunho do dom recebido e das diversas vocações, proporcionando aos crismandos o encontro com homens e mulheres crentes que vivem com coragem e alegria a sua vocação. Neste percurso de animação e acompanhamento inserem-se, eficazmente, os itinerários vocacionais específicos para grupos de jovens, rapazes e raparigas, que querem fazer uma reflexão séria e pessoal em ordem ao discernimento da sua opção e projecto de vida. Trata-se dum caminho programado para um ano, com um encontro mensal de um dia ou fim-de-semana de reflexão, oração e partilha. Temos ainda o “pré-seminário” ou “seminário em família”, como itinerário vocacional específico de acompanhamento, orientação e discernimento para os que se propõem entrar para o Seminário Maior em ordem ao sacerdócio. Menciono ainda os retiros ou exercícios espirituais que são momentos especiais de graça para que a fé seja personalizada, interiorizada e vivida como apelo, chamamento de Deus. Em todos estes percursos é de fundamental importância a chamada direcção ou orientação espiritual. É uma forma privilegiada de acompanhamento personalizado e de discernimento vocacional. De facto, cada pessoa e cada vocação é única, tem uma história singular e problemas e interrogações próprias, que ela precisa de conferir com alguém adulto na fé, para um discernimento sério e maduro. Como podemos ver – e é já um dado adquirido – uma escolha vocacional não amadurece, em regra, através de experiências episódicas de fé, mas através de um mais ou menos longo e paciente caminho espiritual. 4.3. Testemunho vocacional contagiante Hoje, o povo cristão é mais sensível às testemunhas do que aos mestres. O que atrai os jovens não é o estatuto ou papel social de uma determinada vocação. Eles são cativados pelo fascínio do testemunho. Seguem e escolhem o que é significativo para a sua existência pessoal. Têm um sexto sentido para reconhecer as pessoas que são ponto de referência para uma vida de fé e doação, que dão testemunho da beleza de uma vida que se realiza, de modo alegre e feliz, segundo o projecto de Deus. Uma comunidade de testemunhas é o ambiente necessário para a fecundidade vocacional. Todo o adulto na fé sentirá a alegria de ser chamado e, por sua vez, a coragem de chamar com o testemunho de vida, a palavra e a interpelação directa. As famílias cristãs são chamadas a testemunhar o amor na abertura às necessidades da Igreja e do mundo, a promover um clima de fé e a oferecer o ambiente próprio para uma saudável educação humana, afectiva e cristã, em que os jovens aprendam a usar a liberdade e a projectar a vida segundo o coração de Deus. De modo particular, os padres e os religiosos são chamados a deixar transparecer, na sua vida pessoal e comunitária e na sua missão, a beleza e a alegria do sacerdócio e da vida consagrada. Nenhum jovem poderá, de facto, sentir um chamamento, se os seus olhos não puderem ver ao vivo na pessoa, na vida e no ministério dos padres a alegria contagiante de uma alguém que é feliz. Neste sentido é de aproveitar a celebração de ordenações, profissões de religiosos e respectivos aniversários jubilares como ocasiões preciosas de evangelização e proposta vocacional, envolvendo os jovens na preparação e na celebração. 4.4. Grande Oração pelas Vocações Sabemos pela fé que toda a vocação é dom de Deus como aliás toda a vida e vitalidade da Igreja. Por isso devemos implorar também este dom. É um compromisso que se deve estender a todo o povo de Deus e ser assumido por cada comunidade. Por este caminho passa o processo misterioso de toda a vocação apostólica. A vocação nasce da invocação, isto é, da oração. A oração, se inserida num caminho de fé, abre os corações a Deus, põe-nos à escuta e torna-os disponíveis a qualquer solicitação da graça. Feita a nível comunitário, cria o ambiente propício para qualquer semente que o Senhor aí queira semear. Assim, a cultura da oração gera também uma cultura vocacional. Faço pois um sentido apelo a toda a Diocese e a todas as comunidades e movimentos para dar vida a uma “Grande Oração pelas Vocações”: uma oração vivida com intensa confiança e perseverança, capaz de envolver pessoalmente todos os membros do povo de Deus e a realizar com oportunas modalidades comunitárias, de modo programado e calendarizado ao longo do ano e não episódico ou pontual. Neste aspecto existem algumas propostas concretas: a quinta-feira vocacional com celebração da Eucaristia ou uma hora de adoração eucarística, a inclusão de uma prece pelas vocações em todas as celebrações comunitárias, fomentar grupos de oração pelas vocações. Além disso, podem promover-se tempos fortes de oração no dia mundial das vocações, no dia do seminário, na semana vocacional paroquial. Em cada vigararia haverá uma vigília de oração pelas vocações que espero seja preparada por uma equipa de padres e leigos e bem participada pelos fiéis. 4.5. Serviços de apoio e dinamização Sendo a pastoral vocacional algo que diz respeito a todo o povo de Deus, todavia são necessários serviços de apoio e animação como o Secretariado Diocesano da Pastoral Vocacional, que ao longo deste ano nos propomos reactivar. É um organismo de comunhão e instrumento ao serviço da pastoral vocacional na Diocese. Nele devem estar representadas todas as vocações desde os esposos aos consagrados. Compete-lhe promover itinerários vocacionais específicos e coordenar as iniciativas de pastoral vocacional existentes na Diocese; formar os animadores vocacionais e cuidar que no povo de Deus se crie uma cultura vocacional; participar na elaboração do programa pastoral diocesano e colaborar particularmente com a pastoral familiar e juvenil. Quero aqui recordar que todos os sectores da pastoral diocesana são chamados a terem presente a dimensão vocacional. Peço pois a colaboração cordial de todos em espírito de comunhão. 5. A vós jovens: levantai-vos e não tenhais medo! A vós jovens reservo uma palavra amiga de encorajamento. Sei como é difícil a um jovem orientar-se e orientar a própria vida em sentido diverso e melhor, segundo o projecto de Deus, neste mundo que se assemelha a uma grande feira em que são oferecidos os mais variados projectos e modelos, cada qual na embalagem mais sedutora. Quero dizer-vos, por experiência própria, que em Jesus Cristo encontramos tudo o que torna a vida verdadeira, digna, livre, nobre, grande e bela. Não vos deixeis cair na indiferença, na superficialidade e na mediocridade de vida. Procurai dar à vossa vida um projecto belo. Se, no mais íntimo, sentirdes o chamamento do Senhor ao sacerdócio ou à vida religiosa, sede generosos, não o recuseis! Cultivai os anseios próprios da vossa idade, mas não fecheis o coração aos apelos de Deus. E se vos assaltar o temor, ouvi a palavra de encorajamento de Cristo aos apóstolos após a contemplação da transfiguração e que faço minha: “levantai-vos e não tenhais medo”! Com palavras de João Paulo II quero expressar a minha confiança em vós: “O terceiro milénio aguarda a contribuição de uma multidão de jovens consagrados, para que o mundo se torne mais sereno e capaz de acolher Deus e, n’Ele, todos os Seus filhos e filhas” (VC 106). Ouso mesmo oferecer-vos uma breve oração: “Senhor Jesus, Torna-me atento e vigilante No discernimento da vontade do Pai, Para que eu possa em tudo realizar a vocação Com que Ele, desde sempre, me quis e amou. Na hora da dúvida e da provação Dá-me a certeza de não estar só Mas de saber e querer-Te próximo, Para viver contigo a minha oferta, Seguindo-Te humilde e confiadamente No serviço da Tua Igreja e do mundo”. Para terminar, quero fazer um pedido premente a todos, irmãos e irmãs na fé desta Igreja de Leiria – Fátima: acolhei esta carta como impulso para uma meditação sobre a vocação cristã, para uma mais intensa co-responsabilidade de todos os cristãos na promoção das vocações, sobretudo sacerdotais; fazei tudo o que seja possível, em particular através da oração, para que este ano pastoral dedicado às vocações dê muitos frutos. Seria a melhor e mais bela prenda que me poderiam oferecer neste primeiro ano como vosso bispo. Mesmo nos momentos difíceis da história, o Espírito Santo trabalha e encoraja-nos a semear com confiança, sobretudo no coração das novas gerações. É uma certeza da fé. Contemplando Maria, a cheia de graça, a mulher do “sim” a Deus, compreenderemos e ajudaremos a compreender a beleza de uma existência entregue ao projecto de Deus. Com Ela seremos capazes de fazer opções vocacionais para que esta beleza se torne vida e irradie para o mundo. Saúda-vos afectuosamente, + António Marto, Bispo de Leiria – Fátima Festa da Natividade de Nossa Senhora, 8 de Setembro de 2006

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