Depois do referendo, continuar o debate

Questão do aborto não ficou encerrada, defende Francisco Sarsfield Cabral A vitória do “sim” no referendo vai alterar a actual lei do aborto. Embora sem atingir os 50 % da votação que o tornariam vinculativo, este resultado torna politicamente legítimo que o PS mude a lei no sentido anunciado. O referendo de 1998 também não foi vinculativo. Mas os princípios éticos mantém-se, como é óbvio. Há coisas permitidas por lei que não são aceitáveis do ponto de vista moral. A futura lei aumentará o número e a importância das disposições eticamente condenáveis que já existem na lei vigente. Aliás, numerosos defensores do “sim” não se vão contentar com esta vitória. Não faltará muito tempo até se darem conta de que, afinal, mulheres irão a julgamento e serão eventualmente presas. Porque abortaram depois das dez semanas ou porque o aborto não foi realizado em estabelecimento de saúde autorizado. Nessa altura virão reclamar que as dez semanas passem para doze ou mais. A batalha dos valores A questão do aborto não ficou encerrada. Importa ter presente que, em democracia, as leis emergem de consensos maioritários, onde assenta a sua legitimidade. Mas as maiorias mudam. Não confundo direito e moral nem peço ao Estado que seja o guardião da moral. Apenas noto que as leis decorrem da vontade de maiorias. Quem delas discorda tem o direito e o dever de, intervindo no espaço público democrático, procurar alterar a opinião dessas maiorias. Se e quando a maioria dos portugueses se convencer de que é intolerável pôr fim a uma vida humana distinta da vida da mãe, então a lei recuará na liberalização do aborto. Com ou sem referendo. Creio que se caminhará nesse sentido. Não estou a arranjar consolações para a derrota do “não”, agora. Trata-se, sim, de verificar como o avanço das técnicas médicas (ecografias, etc.) está lentamente a mudar a maneira como as pessoas encaram o feto. Daí que nesta campanha se tenha ouvido, muito menos do que em 1998, afirmar que “na minha barriga mando eu”. A batalha contra o aborto ganha-se ou perde-se no plano cultural, dos valores. Por isso é necessário continuar a discutir o assunto, agora já fora de um ambiente de campanha, logo com maior serenidade. Com respeito pelas leis de que discordamos, naturalmente. Mas procurando que a consciência da maioria dos portugueses acabe por entender o que está em jogo. O debate que se travou na perspectiva do referendo teve muito mais substância do que as campanhas eleitorais, onde sobretudo se repetem “slogans” e se promete tudo e mais alguma coisa. Como se compreende, um debate complexo como este não é muito popular – por isso a abstenção, embora diminuindo em relação a 1998, foi elevada. As ideias demoram a germinar na sociedade. Mas muitas sementes foram lançadas. Intervenção cívica Claro que estão em causa questões íntimas, de consciência pessoal. Mas atenção: estão também em causa leis. No caso de aborto fica envolvido um terceiro indefeso, o feto. E é imperioso dar-lhe protecção jurídica adequada. Daí que o gosto pela participação cívica no debate público, manifestado por tantos grupos da sociedade civil que surgiram contra a liberalização do aborto, não se deva extinguir com o referendo. E porque as atitudes convencem quase sempre mais do que os argumentos de palavras, importa que as iniciativas de ajuda às mulheres grávidas em dificuldades, aos seus filhos, etc., que surgiram na sequência do referendo de 1998, continuem a sua obra magnífica e se multipliquem. Nada acabou com o referendo de domingo e muita coisa pode ter começado. Francisco Sarsfield Cabral

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