Da intempérie à solidariedade

Eugénio Fonseca

No dia 20 de Fevereiro de 2011 passa um ano sobre a fatídica manhã em que, inesperadamente, o mau tempo fustigou, sem nenhuma clemência, o arquipélago da Madeira.

Vastas zonas da Pérola do Oceano ficaram inundadas de águas lamacentas que corriam velozmente em direcção ao mar, levando consigo tudo o que encontravam pelo caminho. A morte não se fez rogada para visitar dezenas de famílias. Muitas destas e mais umas centenas delas assistiram, impotentes, ao ruir de suas casas, à destruição de utensílios domésticos e de outros bens necessários à manutenção de postos de trabalho. Muita gente ficou sem o mínimo de meios de sobrevivência. As imagens impressionantes e os doloridos testemunhos das vítimas que nos chegaram, na hora, tocaram profundamente os corações lusos e os de muitos outros que, noutras latitudes do planeta, souberam da tragédia, através dos meios de comunicação social.

E ainda se ouvia o rugido das águas e já se movia, com igual proporção, a generosidade humana vertida numa multiplicidade iniciativas. A Cáritas entrou também nesta torrente de solidariedade. Foram milhares de euros angariados que nos chegaram através da conta bancária aberta para o efeito, de campanhas organizadas por muitas comunidades religiosas, sendo de realçar a renúncia quaresmal de muitas Dioceses. Também a sociedade civil, através de algumas das suas organizações, realizou actividades geradoras de recursos financeiros que foram entregues à Cáritas. Desta vez, foi possível também a recolha de mobiliário, de vestuário, de alimentos, de cobertores… graças à disponibilidade do Chefe do Estado Maior do Exercito e de um Transitário marítimo que viabilizaram o transporte das toneladas de produtos que partiram do porto de Setúbal, cujo Conselho de Administração cedeu um amplo armazém para os guardar até ao embarque.

O povo português é mesmo assim: nunca fica indiferente ao sofrimento de alguém, mesmo que viva em terras longínquas. Na verdade, já tinha sido eloquente a solidariedade demonstrada, um mês antes, com as vítimas do violento terramoto que espalhou a destruição e morte por várias regiões do Haiti. Era, por isso, previsível que fosse menos expressiva a liberalidade da nossa gente.

Passados dias, presenciei os destroços resultantes das enxurradas e falei com alguns dos desalojados. Vi a desolação nos rostos e a devastação em montes e vales. Mas também testemunhei a força do querer recomeçar uma vida nova em muitos madeirenses. Não só nos directamente atingidos, mas nos representantes de diversos organismos públicos e particulares. Todos de “mangas arregaçadas” fizeram o que estava ao seu alcance para que o quotidiano regressasse à normalidade. Muitos já se revelavam extenuados, mas não desistiam de lutar por melhores condições de bem-estar para os seus concidadãos.

A solidariedade é mesmo uma vitamina fortificadora da alma que gera sinergias mobilizadoras de vontades e de iniciativas criativas. Mais: “É um espírito que procura sobretudo construir e não destruir, que procura prevalentemente unir e não dividir. Uma vez que a solidariedade é uma aspiração universal, ela pode assumir muitas formas”. Assim se referiu à solidariedade João Paulo II, na sua mensagem para o XX Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro de 1987). Isso mesmo pude comprovar aquando da minha deslocação à Madeira.

É óbvio que nem tudo correu bem. Houve, de certo, impaciências, desentendimentos, desencontros, aproveitamentos… São comportamentos que se compreendem em situações de caos geradas em circunstâncias de catástrofes.

Tudo o que foi confiado à Cáritas Portuguesa já foi entregue à Cáritas Diocesana do Funchal, que já aplicou grande parte. Quando concluir as acções que se comprometeu apoiar, prestará contas dos resultados alcançados. A transparência é uma atitude que dignifica sempre quem a tem, mas é uma obrigação para quem utiliza bens de terceiros.

Sempre que se procura sentido valorativo para o sofrimento, consegue-se retirar dele algum bem. A calamidade que atingiu a Madeira contribuiu para que o país ficasse mais solidário e humanizado. O respeito pelas regras que regem a Natureza foi reequacionado, permitindo que se tomasse consciência dos atentados que, muitas vezes, se fazem contra o ambiente. Foi proporcionada mais uma oportunidade de criar melhores condições de vida para os Madeirenses. Que tal aconteça, mas para todos. Se tal acontecer, a Pérola do Atlântico ficará ainda bela e valiosa.

Eugénio Fonseca, Presidente da Caritas Portuguesa

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