Conheci D. António Ferreira Gomes como reitor do Seminário de Vilar, no Porto. A sua austeridade britânica era isso mesmo. Uma epiderme de frieza que escondia o que nele havia de atento aos seus seminaristas. Seguia-nos o percurso, mesmo nos cuidados com a nossa saúde, sem que déssemos por isso. Lembro-me do dia em que ali entrei como aluno interno. Éramos duzentos, alguns dos quais iam pela primeira vez. Ao jantar, quando nos distribuiu os lugares no refeitório, chamou cada um pelo nome, o nome completo, e isso, tinha eu dez anos, deixou-me admirado, pois ele mal me tinha visto, assim como aos que então começavam. Essa memória visual exteriori-zou-a ao longo do tempo nas mais diversas circunstâncias. O que me espantava, e que ele manteve, mesmo através do seu episcopado, foi essa capacidade de memorizar o que lia e que depois espraiava no seu ensino. As suas aulas ultrapassavam o conteúdo dos programas e resvalavam sempre para um enciclopedismo que então me fascinava. Mais tarde, como bispo do Porto, tive oportunidade de apreciar nele uma cultura omnímoda que aglutinava extensão e profundidade, coisas que, e para citar o nosso Camões, “juntas se acham raramente”. Como resumiu lapidarmente Mário Pinto, “cultíssimo, a sua cultura era, simultaneamente, de erudição (tudo sabia); de sabedoria (tudo superava); e de originalidade genial (de tudo tirava uma luz surpreendente e mais brilhante). Foi um homem invulgar e não lhe regatearia a classificação de genialidade”. Foi, naturalmente, uma pessoa de princípios. Nele, o sentido da honra e da palavra dada eram sagrados, e pude pessoalmente confirmar que a dignificação de um compromisso se sobrepunha mesmo a uma conveniência eclesiástica. E o mesmo se diga da dignidade de ser pessoa, o que estava patente no átrio do seminário onde fizera inscrever este roteiro de vida: De joelhos diante de Deus; de pé diante dos homens. Foi de pé que esteve sempre como homem. Não só diante do poder político, como perante qualquer autoridade da Igreja, por mais suprema que fosse (Cartas ao Papa). No primeiro caso, ficou célebre a sua carta a Salazar. Mas após o 25 de Abril, em face dos descarrilamentos que ameaçavam a democracia como o voto de braço no ar, os saneamentos selvagens de que resultaram, como ele referiu, “as viúvas dos vivos”, e algumas distorções da liberdade, foi frontal e fiel a si mesmo, como já o tinha sido quando bispo de Portalegre e Castelo Branco ao defender a existência de partidos. Só no Porto, onde teve uma projecção maior, a política o descobriu como consciência do regime. O grande desgosto e desilusão que o amarguraram não lhe vieram da política. Vieram-lhe de dentro, da própria Igreja, sobretudo dos seus colegas no episcopado. O silêncio de gelo com que os seus pares o isolaram e a indiferença com que, estando todos em Fátima, o viram regressar ali, vindo do exílio, foram mágoas de que não tirou depois qualquer desforço. Pelo contrário, defendeu sempre, e nas horas convulsas do PREC, aqueles que, numa hora difícil, o tinham ignorado. Como nota final ocorre perguntar, ao vermo-lo assim como pessoa aparentemente tão hirta, se D. António era alheio a qualquer sentido de humor. Então, valerá a pena terminar com este fait-divers que, há dias, me contaram: Um dia, ao ir do Paço Episcopal para a Sé, que era em frente, com a ventania que estava voou-lhe da cabeça o solidéu que uma criança correu a apanhar, explicando: “isto caiu-lhe”. Ao que D. António, depois de lhe agradecer, retorquiu: “Sabes, meu menino, isto é pra cair.” Pacheco de Andrade