Memórias de um sobrinho

José Ferreira Gomes Regresso a casa depois do passeio de Domingo, de uma tarde quente de Domingo por volta de 1980. Com os meus irmãos, fora explorar a planície da Aveleda, nas margens do rio Sousa. O meu tio já não liderava os longos passeios em exploração de algum recanto desconhecido ou para reencontrar algum ponto da sua já distante infância. Ficara em casa em animada conversa com os irmãos, conversa que provavelmente oscilava entre as pequenas notícias da família e dos vizinhos da velha casa do Carreiro, em Melhundos e os grandes problemas nacionais ou mundiais. Em ambos traria um ponto de vista novo e surpreendente. Para ambos mostraria o mesmo interesse, quer fosse o pequeno sucesso de um filho de algum velho trabalhador da casa quer fosse alguma notícia do jornal do dia. Regresso e conto que encontrara a pequena capela do Senhor do Monte aberta por estar em preparação a festa anual, que lá estava a placa referindo a construção da capela em 1621 por ordem de um tal Miguel Barbosa. Corrige-me! A minha data estaria errada. A minha memória de uma hora enganava-me. A data gravada na pedra era sim de 1612. Não me valia a pena duvidar da sua memória de alguns decénios. O tal Miguel Barbosa mandara de facto construir a capela em 1612! Era assim o seu rigor, o mesmo que lhe permitia manter uma longa conversa repleta de citações, desde os autores clássicos ou medievais até aos contemporâneos, mesmo aparentemente afastados da sua esfera; o mesmo que lhe permitiu escrever longos textos no exílio sem acesso a uma biblioteca nem à Internet que hoje alimenta a nossa preguiça. Eram assim as tardes de Domingo na minha infância, no Carreiro. Conversas que só mais tarde pude acompanhar; passeios pelos campos e pelos lugarejos dispersos pela imensa serra entre Melhundos e Vila Boa. Pelos campos que os nossos ascendentes tinham trabalhado ao longo de muitas gerações, pelo menos desde que os registos paroquiais começaram com o Concílio de Trento em finais do século XVI. Foi assim aquele Domingo de Julho de 1959 em que, já noite, toda a família se despediu dele já com a ameaça bem firme de que as férias para que partia no estrangeiro não seriam como as outras. A sua velha Mãe ter-se-á retirado mais cedo e só os irmãos discutiam toda a controvérsia pública e o que poderia suceder. Dele vinha apenas a palavra serena de quem estava bem consciente do seu papel numa História em cujo progresso sempre acreditou. E só voltaria dez longos anos mais tarde para reencontrar a Mãe, numa sentida oração frente ao jazigo. Pelo meio ficou um longo peregrinar por essa Europa. Desse período fica-me a memória da visita anual; fica a recordação do seu nome impronunciável e impublicável; ficam as cartas que chegavam com sinais claros de já terem sido lidas; fica o fotograma que a Pide esqueceu de censurar na notícia da RTP relativa ao Concílio e que o fotógrafo António Guimarães soube registar e colocar na sua montra durante muitos meses. Foi doloroso mas a Primavera de 1969 trouxe a excitação do regresso e, depois, depois trouxe-nos as Homilias da Paz e tantas outras. Homilias na mesma Sé em que ainda recordo a minha surpresa com todo o reboliço da primeira entrada solene, espreitando do varandim que a minha tia inventou que deveria ter sido reservado para a família. Desta primeira Homilia aos seus diocesanos do Porto não guardaram os meus cinco anos qualquer memória. Das últimas sim, mas essas foram lidas na Sé mas ouvidas e avidamente seguidas por todo o país. Dos últimos anos na Mão Poderosa, em Ermesinde, fica a memória dos olhos falhos que corrigiram as provas das Cartas ao Papa em ampliação máxima. Sempre a mesma perspicácia para comentar a notícia do dia ou algum pormenor da pequena história do seu Melhundos. Sempre o mesmo rigor de uma memória vivíssima. Uma maior prudência do meu lado para não ser apanhado em falso. José Ferreira Gomes

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