Cultivar a Árvore da Paz

A liturgia de hoje introduz-nos em 2007 com uma bênção de paz: “O Senhor te abençoe e proteja… O Senhor dirija para ti o olhar do Seu rosto e te conceda a paz” (Num 6,22s). Assim, no início do Ano Novo, a Igreja faz memória da bênção que Deus dirigia ao povo de Israel, assegurando-lhe presença, protecção e paz. É uma bênção que atravessou os séculos e que, na plenitude do tempo, se tornou visível e experimentável na pessoa de Jesus, o Filho de Deus, nascido de Maria, feito homem como nós e para nós (cf. Gal 4,4-7). Ele é a bênção viva e pessoal de Deus à humanidade, com o dom da verdadeira paz. É para esta “bênção divina, feita carne humana” em Jesus Cristo, que hoje nos voltamos, revivendo a fé e o amor dos pastores que vão ao Seu encontro, O reconhecem como o Salvador e, como tal, O anunciam com alegria e louvor a Deus. O seu louvor é participação e eco do canto dos anjos: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”. É neste contexto que a Igreja dedica o início do novo ano à celebração do Dia Mundial da Paz e o Santo Padre oferece uma Mensagem aos cristãos e a todos os homens de boa vontade: “A pessoa humana, coração da paz”. Não me é possível, nesta circunstância, resumir o amplo e denso discurso do Papa Bento XVI. Limitar-me-ei a reflectir e concretizar alguns aspectos mais pertinentes ao nosso quotidiano e ao nosso contexto sócio-cultural. Repensar os fundamentos da casa do homem no mundo Os acontecimentos vividos em 2001 com o ataque terrorista em Nova York e todos os que se lhe seguiram, sobretudo no Médio Oriente, abalaram os fundamentos da consciência humana e desencadearam recordações de momentos trágicos do recente passado europeu. Tais factos obrigam a repensar os fundamentos da casa do homem neste mundo. E a perguntar-se com o salmista: “Quando os fundamentos são abalados, que pode e deve fazer o justo?” (Sl 11, 3). Sobre que fundamentos está construída a convivência entre os homens e entre os povos? Sobre o poder técnico, económico e político ou sobre a dignidade e o reconhecimento dos direitos humanos e da justiça? Sobre convicções e concepções fundamentais do homem e da família humana, partilhadas por todos, ou sobre meros consensos precários e provisórios? Qual o eixo e o coração que dão sentido à história dos homens e aos quais esta deve servir? É neste contexto que ganha actualidade e urgência a mensagem do Papa. Bento XVI não se limita a acentuar os pontos de fricção ou de oposição à paz no nosso planeta. Vai mais fundo, às raízes profundas da paz, inscritas na natureza do ser humano. Todas as estratégias políticas, todos os equilíbrios diplomáticos invocam algo mais: aquela realidade de luz e discernimento que é a pessoa humana. Eis uma concepção da paz que ultrapassa a concepção demasiado redutora e concentrada no tema dos conflitos armados. Cultivar e fazer crescer a árvore da paz Para nos permitir contemplar a beleza e a amplidão do tema, o Papa usa uma metáfora muito bela e feliz: “a árvore da paz” cujo cultivo requer uma específica “ecologia da paz”. Com confiança e esperança, faz-nos compreender que é possível cultivar e fazer crescer esta árvore a partir de uma visão correcta e ampla da pessoa humana, frente a outras visões redutoras do seu valor e da sua dignidade. Assim, a árvore da paz lança as suas raízes na dignidade de cada pessoa humana, criada à imagem de Deus; eleva o seu tronco nos direitos e deveres fundamentais de todos os homens; e adquire diversas ramificações em todos os âmbitos da vida humana em que desabrocham as flores e os frutos mais belos da paz. Mas, para isso, precisa de se alimentar continuamente das raízes. “O homem e a mulher criados à imagem de Deus” é a afirmação suprema da dignidade transcendente e incondicional de cada ser humano, que nunca foi ultrapassada por qualquer outra no decurso da história e da cultura. Foi esta convicção que levou um dia o cardeal Cardijn a dizer: “A pessoa do trabalhador vale mais que todo o ouro do mundo”! É esta convicção que impede reduzir o ser humano a uma coisa, a um objecto, à mercê da instrumentalização seja de quem for. Pela sua dignidade, a pessoa humana não é algo disponível; quer dizer, não pode estar submetida à lei do mais forte: económica, política ou tecnologicamente. A dignidade da pessoa humana não se atribui a alguém; reconhece-se. Não é dada; respeita-se. Está inscrita no interior de todo o ser humano. Por isso, o Papa propõe uma nova gramática da paz, uma gramática transcendente, inscrita na própria natureza do ser humano “como o conjunto de regras do agir individual e das relações mútuas entre as pessoas, segundo a justiça e a solidariedade”. Toda a ofensa à pessoa é uma ameaça à paz Quem não sabe respeitar o outro, nunca saberá o que é a paz. Este respeito não se improvisa. Nasce do profundo do coração e vive dum exercício contínuo, quotidiano: de um estilo de vida que olha os outros com atenção, que não quer servir-se deles mas antes servi-los, para crescer juntos em relações mais verdadeiras e mais humanas, mais dignas para todos. A paz no respeito pela pessoa é, pois, um hábito espiritual, uma marca que se traz dentro e irradia em tudo o que fazemos; uma virtude feita de rectidão interior, de honestidade na escolha dos fins e dos meios em ordem à acção, alimentada constantemente pela vontade firme de não fazer mal a ninguém, respeitando os direitos de todos, sobretudo dos mais necessitados. “Toda a ofensa à pessoa é uma ameaça à paz; e toda a ameaça à paz é uma ofensa à verdade da pessoa e de Deus”. Educar para a estima e para o amor universal por toda e cada pessoa humana é, pois, a grande motivação que torna possível, necessário e belo o empenho pela paz. A ecologia da paz requer o cuidado e a protecção do filho em gestação e da mãe Estamos dispostos a empenharmo-nos por aqueles valores essenciais do ser humano que estão ligados à ecologia da paz? A ameaça à paz e à convivência civil entre os homens, entre os povos e entre as culturas não está só nos conflitos armados e no terrorismo. Está também, de modo mais subtil mas não menos incisivo, nas “mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto, pela experimentação sobre os embriões e pela eutanásia”. Esta é uma das passagens-chave da mensagem de Bento XVI, que interpela particularmente a nossa consciência perante o próximo referendo sobre o aborto. Está em questão o direito à vida como verdadeira pedra angular no caminho do progresso moral da humanidade. Uma certa cultura emergente experimenta como que uma alergia perante a afirmação da inviolabilidade da vida humana nascente. Mas a ecologia da paz implica uma ecologia da vida do ser humano. Uma elementar coerência com o empenho pela defesa da vida vegetal e animal comporta a exigência de determinados fins e meios que sejam respeitadores e protectores da vida humana já iniciada. Verificamos com satisfação que aumenta a sensibilidade em relação à protecção das crianças, às condições dignas da maternidade, à igualdade de todos os seres humanos, à defesa e protecção do meio ambiente. Também cresce em todo o mundo a rejeição da pena de morte e da tortura, como ainda agora acabamos de constatar na morte do ex-ditador iraquiano. Mas, paradoxalmente, assistimos à banalização crescente do aborto que provoca a morte silenciosa de um ser humano indefeso e inocente. Porquê esta desvalorização da vida humana nascente, na escala de valores? Como foi possível à nossa cultura, que se reclama humanista, pôr a liberdade humana contra a vida humana? Porquê esta distinção discriminatória entre os seres humanos nascidos e os nascituros em gestação? Porque não paramos em contemplação e reflexão sobre o momento luminoso do início da vida humana que hoje as novas técnicas põem diante dos nossos olhos? Porque é que as leis humanas parecem interessar-se mais pela protecção de certas espécies vegetais (como o cortar determinada árvore) ou animais (como os ovos de cegonha) do que do ser humano em embrião ou feto? O fenómeno do aborto como chaga social é sintoma de um mal-estar mais profundo de cultura e de civilização, da própria sociedade. Alastra uma visão materialista que reduz o conceito de vida humana a um mero produto ou material biológico; e uma visão pragmático-utilitarista que remete por completo a sensibilidade moral para as fronteiras dos custos, do bem-estar, do conforto etc. E, então, a nossa sociedade torna-se simultaneamente frágil e “dura” em função da lógica utilitarista e competitiva. Não ignoramos que, muitas vezes, a decisão de abortar é fruto de grandes sofrimentos e angústias (sem excluir as pressões), que é um verdadeiro drama para muitas mulheres. Mas pensamos que a um drama não se responde com outro drama: o de destruir uma vida humana que desabrocha e que é o elo mais fraco em todo este processo. A resposta verdadeiramente humana e humanista a este drama é um projecto solidário e galvanizador de todos os recursos da sociedade civil e do Estado, para oferecer todo o cuidado, acolhimento e protecção de ordem social, económica e psicológica tanto ao filho em gestação como à mãe que o gera. A liberalização do aborto, sob a forma encapotada de despenalização, não é a resposta digna e condigna. É uma fuga em frente, para não atacar o problema nas suas raízes. Não é caminho de progresso e de futuro. Tudo isto exige um sobressalto das consciências para uma acção solidária. Como diz o poeta latino-americano Óscar Campana: Se não há caminho que nos leve, Nossas mãos o abrirão; E haverá lugar para as crianças, Para a vida e a verdade, E o lugar será de todos Em justiça e liberdade. Se alguém se anima, avise, Seremos dois para começar! Que este apelo do poeta desperte, na sociedade e nas comunidades cristãs, o empenho para dar apoio concreto às mulheres em situação dramática e proporcionar acolhimento aos bebés que nascem em situações desfavoráveis. Feliz Ano de Paz para todos, sob a protecção de Nossa Senhora, Rainha da Paz! + António Marto, Bispo de Leiria-Fátima

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