Covid-19: «Dificuldades poderão vir a ser muito maiores» – Eugénio Fonseca

A Cáritas Portuguesa lançou esta um apelo público de apoio, no qual defendeu uma “mobilização nacional” para reforçar a resposta solidária à crise provocada pela pandemia. A Renascença e a ECCLESIA entrevistam o presidente do organismo católico de solidariedade, Eugénio Fonseca, sobre o impacto da crise sanitária e económica.

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Joana Bougard/RRA Cáritas quer inverter a curva da pobreza em Portugal, e foi com esse objetivo que esta semana lançou uma nova campanha, reforçando o apelo à contribuição dos portugueses. Está a ser difícil manter a ajuda a quem precisa, sendo certo que há cada vez mais gente a necessitar de apoio?

É verdade. Já está a ser difícil, e seria bom que estas dificuldades se mantivessem no nível que estão. A preocupação que temos, pelos indicadores que são públicos, é que as dificuldades poderão vir a ser muito maiores a partir do último trimestre deste ano, com um agravamento maior no primeiro trimestre (de 2021), porque as pessoas que nos procuram a causa fundamental para os pedidos é a perda do trabalho e a baixa significativa que tiveram nos rendimentos. Ora, se é verdade que o desemprego pode ter um aumento substancial a curto prazo, essas dificuldades vão ser maiores.

 

E vão manter-se no tempo.

Tudo indica que a recuperação económica de que se fala vai ser mais lenta, porque estamos a falar de uma contração da economia, não só a nível de alguns países da Europa, mas de toda a Europa e do mundo inteiro. Neste caso a crise não vai com certeza ser igual em todos os países, em termos da sua agressividade, os países com economias mais débeis vão sofrer mais, e nós em Portugal temos este problema estrutural de que a produtividade não é suficiente para satisfazer o nível de necessidades, sendo a nossa dependência externa na ordem dos 60%. Isto é uma grande dificuldade.

Dos indicadores que já foi possível recolher – e ainda estamos no início da crise – em quanto é que cresceram os pedidos de ajuda à Cáritas, e à rede de Cáritas diocesanas?

Confirma-se os 40%, até com um ligeiro aumento, tendo em conta que de maio a junho ajudamos 3371 pessoas, o que representa 49% de casos novos. Claro que o número de casos que tem aparecido à Cáritas é maior, mas nem sempre as ajudas pretendidas estão ao nosso alcance, por falta de meios financeiros disponíveis. Mas, não quer dizer que as pessoas fiquem sem algum tipo de resposta, nem que seja ajudá-las a encontrar oportunidades de ajuda através dos outros parceiros, encaminhando-as até para as medidas que o governo tem vindo a implementar para aliviar essas mesmas dificuldades.

 

O que é que as pessoas precisam mais? Alimentação, pagar contas?

A alimentação… só para terem uma ideia, entre maio e junho, com a ajuda de vários parceiros – superfícies comerciais, Banco Alimentar – só entre as pessoas que procuram a Cáritas distribuímos 132 toneladas de bens, essencialmente alimentos.

Houve uma onda enorme de solidariedade na fase inicial da pandemia, quando se começou a vislumbrar a crise económica, que assentou predominantemente, para não dizer exclusivamente, no apoio à aquisição de bens alimentares. Porque esta crise teve essa surpreendente novidade: veio de repente, de uma forma abrupta, e logo no primeiro mês em que as pessoas se viram sem rendimentos – não quer dizer que foi sem trabalho, porque foi aquele mês em que houve o impasse entre a solicitação e a aprovação do lay-off, e naquelas empresas que não puderam avançar com os vencimentos, as pessoas tiveram um mês sem vencimento. Aí sentiram-se muito os pedidos de ajuda, e aquilo que pediam era aquilo que não era costume, que era logo para a alimentação.

Isso não mostra a enorme fragilidade em que as pessoas vivem, em que qualquer surpresa faz com que seja impossível manter a sua vida normal?

É um bocadinho o espelho do tipo de economia que temos, que nada tem de sustentável. Andámos muito tempo estupefactos com a recuperação que o país teve em termos económicos, depois de uma crise com consequências bastante adversas para a maioria da população portuguesa. Essa  recuperação económica foi feita pela avalancha de turismo, que ninguém consegue explicar, de repente aconteceu, descobriu-se como Portugal era – e é, de verdade – uma boa opção para fazer turismo, o que arrastou consigo a necessidade de alojamentos para um certo tipo de turismo que era mais básico, com menos poder económico, e daí surgiram os alojamentos locais. Eu não quero dizer que foram os alojamentos locais que arrastaram este problema, mas o que é facto é que a falta de habitação fez com que nas casas disponíveis os seus proprietários elevassem o preço das rendas de uma forma totalmente desproporcionada dos rendimentos. A recuperação económica também aconteceu para além do Turismo, porque as ofertas de trabalho também eram, em termos remuneratórios, muito baixas. Tínhamos licenciados a ganhar 700 euros…

Qual é a região do país mais problemática neste momento? Onde é que cresceram mais os pedidos de ajuda?

É outra situação que também nos deixa com muitas inquietações, é que ela é transversal a todo o país. Até nas zonas onde uma certa economia familiar, no sentido da subsistência, ia amolecendo aquilo que eram as necessidades mais básicas, até aí estão a chegar pedidos. Porque o próprio confinamento sanitário criou algumas necessidades das pessoas no acesso às respostas que existem. Não fora um movimento espontâneo, muito a partir das autarquias e das paróquias, dos grupos de maior proximidade, que ajudaram as pessoas a resolver o acesso a essas oportunidades que estavam a ser geradas, e o drama teria sido maior.

Eu chamo a atenção para uma questão que começou a surgir e, por proposta da Cáritas, gerou-se uma plataforma de apoio psicológico, que está sediada agora no ministério da saúde. Mas, os problemas estão-se a agudizar e agora não basta o apoio psicológico, já nos está a ser pedida ajuda para pessoas que estão a ficar com depressões psíquicas, com um certo tipo de obsessividade e com medo, porque no fim de contas também se instalou o medo relativamente ao futuro. Há que agilizar o apoio no campo da saúde mental, que tem grandes lacunas no sistema nacional de saúde, e não aconteça o que aconteceu na crise anterior, em que se baixaram significativamente aqueles medicamentos de uso mais habitual, e se elevou o preço dos fármacos relacionados com o tratamento no que diz respeito à saúde mental, alguns até sem comparticipação. Isso não pode ser, porque esses problemas de ordem mais psiquiátrica são resultantes dos problemas que as pessoas estão enfrentar com muita dificuldade emocional.

 

Foto: Joana Bougard/RR

Esta pandemia provocou dificuldades também às instituições, e no caso de Cáritas impediu que este ano se realizasse o peditório público, que é uma das principais fontes de receita. Tem dito nas suas entrevistas que já começa a não haver meios para ajudar, para além da alimentação propriamente dita. É nesta linha que surge a nova campanha ‘Heróis Doar’? Há aqui um apelo claro para que os portugueses ajudem?

Eu não digo que estejam satisfeitas todas as necessidades alimentares, agora é preciso saber que os géneros alimentares têm de ser cozinhados, e para cozinhar é preciso ter gás, ter água, ter energia elétrica.

O governo, logo no início, criou medidas que são muito importantes, como a de ninguém ser despejado da sua casa, ninguém ter cortes de eletricidade, de gás ou de água, mas isto vai durar até dezembro, e nós estamos a ajudar as pessoas a perceberem que, ao recorrerem a estas medidas, estão a contrair dívida, e só se apercebem quando acabar a moratória, o que quer dizer que em janeiro as pessoas vão ter de acumular parte da dívida contraída com as despesas relativas a esse mês, se entretanto não forem tomadas outras medidas.

Há que evitar o endividamento das famílias, porque depois é uma espiral que leva muito tempo a recuperar. Não é certo que o trabalho seja devolvido, a curto prazo, e se assim não for as pessoas nunca mais se equilibram, em termos dos orçamentos pessoais e familiares. Há outra dado: grande parte das pessoas, neste país, não têm gás canalizado, têm de ir comprar a botija e onde a vão comprar, têm de a pagar. Se não a pagam, fica no tal “rol”, mas tem de ser paga um dia, portanto, estas ajudas são aquelas que agora nos estão a ser pedidas com maior frequência. Além disso, há outra que é nova, são os apoios para suportar os gastos com a internet.

 

Que também aumentaram, não é?

Aumentaram, por causa dos estudos. Muita gente não tem internet como serviço, em casa, tem de comprar pacotes, que têm uma certa duração. Claro que quando se trata de necessidades como o acesso à instrução…

Este é um problema que o país vai ter de resolver, não posso ouvir dizer que há uma geração que pode estar já com o seu futuro hipotecado só porque houve turbulência no sistema de ensino. Isso não pode acontecer. A Educação é um dos alicerces fundamentais para a autonomia das pessoas, no acesso às oportunidades.

 

Voltando à campanha: a Cáritas precisa de ajuda para continuar a ajudar, mas não receia que esta crise também a ajuda dos portugueses seja difícil?

Receio. Confesso, é ser realista. Já disse há pouco: foi grande a generosidade dos portugueses, houve um envolvimento muito grande dos media nessa solidariedade e foi graças a esse envolvimento que se conseguiu gerar uma grande onda de solidariedade. Também compreendemos que não se pode andar, através dos media, constantemente neste tipo de campanhas, até porque elas têm a tendência de diminuírem no seu fluxo. O apelo que faço é que, aqueles que ainda podem, não fiquem indiferentes. Os que podem ainda, que não fiquem indiferentes.

Não quero que aquilo que vou dizer seja qualquer tipo de chantagem, mas é constatar: muita gente chega a dizer-me ‘tanto ajudei e agora sou eu que preciso’. Isto é uma amargura muito grande para as pessoas. Tenhamos presente, nesta dinâmica solidária, vamos provar que do pouco que temos – essa é a experiência da Cáritas – ainda se partilha, em favor dos outros.

Claro que aqui também de entrar a dita responsabilidade social das empresas. Aquelas que estão consolidadas, em termos financeiros, têm de partilhar alguns dos dividendos, não deixando isso para quem já tem muito dinheiro – administradores e outros, que já têm salários significativos.

Há um testemunho interessante, que já recebemos de duas embaixadas: em vez de fazerem uma festa, no dia do seu país, distribuíram esses encargos que tinham por algumas instituições, nomeadamente pela Cáritas. É um exemplo.

 

Esta campanha vai durar até quando?

Vai depender do sucesso que tiver, porque chega a um ponto em que a gente percebe que tem de reinventar formas de solidariedade. Enquanto sentirmos que a generosidade do povo está a ser justificativa de se manter a campanha, ela vai manter-se.

 

Foto: Joana Bougard/RR

Muitos receiam que se esteja apenas no início de uma crise económica e social sem precedentes… Como é que avalia as medidas que têm sido tomadas pelo governo?

Até agora têm sido medidas avulsas. Em termos de política, há vários desafios pela frente. O momento que estamos a viver vai obrigar, com certeza, a transformações na forma como vivemos e convivemos. Eu acho que tem de haver sinais objetivos de que essa mudança se vai operar, ninguém está dispensado de contribuir para essa transformação.

A classe política tem esta oportunidade para demonstrar a sua credibilidade. Efetivamente, é uma forma das mais nobres de cidadania, de exercer este dever que cada cidadão tem.

Há sobre o exercício da ação política, em termos de governo, direto ou indireto – o Leonardo Boff diz que há os Políticos, que somos todos, e os políticos, que praticam a política, no sentido da governança. Não é que seja menor, pelo contrário, é até uma exigência muito maior. Mas é preciso adquirir uma determinada credibilidade perdida.

 

O que quer dizer com isso? A classe política, no geral, está distanciada das necessidades reais das pessoas?

Está. Nós já temos um grande défice, na dimensão representativa da democracia, pela taxa de abstenção, cada vez mais preocupante. Agora, em termos de democracia participativa, há lacunas muito grandes, os deputados não se podem mostrar só enquanto candidatos. Têm de estar próximo, acho que se devia estar menos tempo em hemiciclo – sei que têm as comissões de trabalho, que às vezes o povo não vê – mas gostaria mais de os ver com algum tempo para estar nos círculos eleitorais por que foram eleitos. Muitos deles nem vivem ali.

 

Houve alguma situação mais gritante, neste tempo?

Não, pelo contrário. Houve até, na pandemia, um sinal daquilo que eu acho que é o grande desafio, haver convergência política, apesar da matriz ideológica ser diferente. É verdade que não foram todos os grupos parlamentares, mas houve uma base de apoio consensual que permitiu que se tomassem medidas com maior consistência na prevenção do contágio. Agora, temos de o demonstrar nesta crise económica, e eu mais uma vez digo: o verdadeiro político é aquele que pensa no bem comum. Agora passei a dizer isto: as ideologias são importantes, mas não matam a fome. Portanto, há que criar condições para que o povo acredite, de facto, que aqueles que escolheram estão mais interessados nos reais problemas da população portuguesa do que em defender ideologias. Sem pôr de parte o valor que essas ideologias têm, sobretudo quando elas se dirigem para aquilo que o Papa Francisco chama, sabiamente, de ecologia humana integral. Esta unidade toda do que é a relação entre a pessoa e o seu ambiente, o cosmos.

Este pacto de regime devia existir, para aquilo que é essencial: os Direitos Humanos.

 

Recentemente a Cáritas Europa e 11 organizações solidárias uniram-se para pedir à União Europeia a criação de um Fundo de Emergência Social, destinado a apoiar os serviços sociais essenciais, e responder à crise provocada pela pandemia. Acredita que será criado? Há sensibilidade para isso na Europa de hoje?

A esperança grita dentro de mim que isso é possível. Todos os países da Europa foram atingidos. Mas receio que também grite mais alto do que a minha esperança o poder que alguns países têm tido no concerto da União Europeia, pondo em causa o seu próprio fundamento, que se baseia na solidariedade.

É hora de a União Europeia mostrar que é mesmo uma União, que não é apenas uma congregação da países. Quero crer que isso vai acontecer com solidariedade. Isto quer dizer, sem encargos que venham a própria sustentabilidade do desenvolvimento dos países que precisam desses fundos.

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