Corpo de Cristo, desafio e anúncio

Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo 1. A Solenidade litúrgica do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, tem, na linguagem popular, a designação de Festa do Corpo de Deus. Não se trata de admitir a existência de uma qualquer forma de corporeidade em Deus, mistério insondável ligado ao sentido último da matéria, mas de afirmar a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, expressa no Seu Corpo, que é divino. No Corpo de Cristo realiza-se a plenitude de sentido do corpo humano, situado na ordem da criação cósmica, em que o homem, criado à imagem de Deus, exprime, no seu corpo toda a riqueza de ser imagem de Deus. Numa cultura que valoriza, quase idolatricamente o corpo, é bom meditarmos sobre o Corpo de Cristo, que o torna igual a nós, e que é para a vivência da corporeidade humana, desafio e anúncio, eu diria mesmo, provocação. No Novo Testamento esta dimensão física e material do ser humano é designada por duas palavras diferentes: carne (sarx) e corpo (sômma). A carne designa o elemento cósmico do ser humano, que ele comunga com todo o cosmos, unido numa harmonia que lhe permita viver, embora a vida seja uma expressão do corpo. Este designa o homem na sua totalidade, material e espiritual, capaz de amor e sujeito de relação. Esta é a expressão mais elevada do corpo humano, a sua capacidade de amar, a Deus e aos homens, a sua vocação de comunhão. A diferença destes conceitos é clara na experiência da morte. Antes, o homem tem um corpo carnal, sujeito ao sofrimento e à morte. Morto, já não é um corpo mas um cadáver. Porque o homem vive para além da morte, o homem continua a ter um corpo, porque a corporeidade é essencial à expressão humana. É misteriosa para nós esta corporeidade humana depois da morte, cujo mistério se antevê na ressurreição de Cristo, que continua a ter um corpo, não carnal, mas espiritual, segundo a linguagem de São Paulo. Segundo este Apóstolo, o primeiro que faz uma verdadeira teologia do corpo, é a carne que, com os seus instintos e apetites, se torna cativa do pecado, arrastando o homem todo para o pecado, na sua inteligência, no seu coração, na sua liberdade, tornando-se “corpo de pecado”. Dessa situação o libertará Jesus Cristo com o dom do seu próprio Corpo, anunciando para o homem “um corpo de graça”, participando na ressurreição do Corpo de Cristo. Pela força do Espírito, o cristão passa a poder viver a sua corporeidade ao ritmo do Corpo de Cristo ressuscitado. 2. O Corpo de Cristo é carnal. Nos primeiros séculos do cristianismo surgiram cristologias que negavam que o Corpo de Cristo fosse carnal, como o nosso. Ele teria um corpo misterioso, só espiritual, aparência de corpo na ordem cósmica por nós conhecida. O Povo de Deus, no seu sentido da fé, e o Magistério Apostólico, sempre rejeitaram estas visões do Corpo de Cristo. Talvez por isso o Apóstolo São João ao referir-se ao Corpo do Senhor, lhe chama carne. Logo no prólogo do Evangelho afirma: “E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,14). E na sua primeira Carta: “todo o espírito que confessa que Jesus veio na carne é de Deus” (1Jo. 4,2). Mas a dimensão carnal do Corpo de Cristo é obra do Espírito Santo, desde o primeiro momento. Gerado no seio de uma Virgem, a Imaculada, por acção do Espírito Santo, o corpo carnal de Cristo participa da pureza da divindade desde o seu primeiro momento. É por isso que todas as gerações aclamam Maria dizendo-lhe: “Bendito é o fruto do teu ventre”. A carne de Jesus nunca foi escrava do pecado. Sujeita às vicissitudes normais dos seres carnais, como a fome, a sede, o cansaço, o sofrimento e a morte, garante-lhe uma corporeidade plena. No seu Corpo, Cristo glorifica o Pai, vive a comunhão trinitária, ama como Deus ama, exprimindo esses sentimentos superiores nas vicissitudes carnais do seu corpo. É assim que a Sua morte oferecida por amor se torna redentora. Cristo viveu em plenitude a Sua corporeidade, com uma grande diferença em relação a todos os outros homens: o seu Corpo nunca foi escravo do pecado. Assim pôde “fazer-se pecador por nós”, para restituir à sua dignidade e capacidade originais os nossos corpos. A Sua morte por amor, acto supremo de louvor do Pai, é a expressão máxima da Sua corporeidade. Ao sermos redimidos na Sua morte, os nossos corpos readquirem a sua dignidade de serem expressão do amor e da beleza, da própria ternura de Deus. 3. Mas o Corpo de Cristo é para nós, hoje, o Seu corpo ressuscitado. No seu corpo ressuscitado, Jesus revela, definitivamente, o mistério do corpo humano, porque a sua ressurreição é para ser participada por nós, na esperança da ressurreição do nosso corpo. O Corpo de Jesus ressuscitado é real, não é uma aparência, e é o mesmo corpo. O cadáver de Jesus não foi abandonado, foi transformado na ressurreição. O túmulo estava vazio. As narrações evangélicas das aparições do ressuscitado insistem nesta identidade do Corpo do Senhor, o mesmo que foi gerado no seio de Maria: “vede as minhas mãos e os meus pés, sou mesmo Eu. Tocai-Me e verificai que um espírito não tem carne e osso, como vós vedes que Eu tenho” (Lc. 24,39). Uma das garantias que Jesus lhes dá que o seu Corpo ressuscitado é o mesmo corpo, o Seu corpo, é dizer-lhes que é o mesmo Corpo que sofreu a Paixão. Perante a dúvida de Tomé, Ele diz-lhe, mostrando-lhe as chagas das mãos e o lado aberto: “Põe aqui o teu dedo, aqui tens as minhas mãos. Estende a tua mão e mete-a no Meu lado” (Jo. 20,27). Esta identificação com o Corpo que sofreu a Paixão manter-se-á em todas as expressões do Corpo de Cristo: na Igreja, Corpo de Cristo, e no seu corpo eucarístico. O Corpo de Jesus ressuscitado é o mesmo, mas é diferente. Na morte atingiu a sua forma definitiva, o que nos revela a importância decisiva da morte como experiência fecunda e criadora, dando aos nossos corpos mortais a sua forma definitiva. Em que consiste essa diferença? São Paulo chama-lhe “corpo de glória” (Fil. 3,21) ou um “corpo espiritual” (1Co. 15,44). A carne de Jesus, na sua qualidade de participação na matéria e no cosmos é transformada, fazendo intuir qual será o futuro da matéria. O seu espírito humano (psiquê) que garante a vida humana do homem Jesus, é completamente substituída pelo Espírito Santo, que pode agora ter uma expressão plena num corpo humano. Esta plenitude do Espírito no Corpo de Jesus, torna ainda mais o corpo expressão do amor de Deus. Para que possa amar os seus discípulos com essa intensidade, fá-los participar da Sua vitória sobre a morte, antecipando para eles, que ainda não morreram, a possibilidade de amar como Jesus ressuscitado ama: fá-los morrer e ser sepultados com Ele, no Baptismo, e dá-lhes o Espírito Santo. Assim também os seus corpos mortais poderão ser transformados em corpos de glória e amarem a Cristo como Ele os ama. Esta redenção dos nossos corpos materiais, antes da nossa morte, mostra a pressa de Jesus ressuscitado de poder estabelecer connosco uma relação de amor ao ritmo da eternidade. 4. Esta nova possibilidade de amor entre Cristo e os discípulos, revela-nos outra expressão surpreendente do Corpo de Cristo, a Igreja. Nela se afirma, de forma definitiva, que a verdade última do corpo é ser expressão de amor, constituindo uma unidade ao nível do ser, participação da unidade de amor entre as pessoas divinas, diferentes, mas um só. Que o amor intenso entre as pessoas as leva a constituir um só corpo, estava anunciado a propósito da união conjugal entre o homem e a mulher: “serão os dois um só corpo” (Gen. 2,24). Para os esposos cristãos, cujos corpos foram transformados pelo Espírito de Jesus ressuscitado, esta união que fará deles um só corpo só é possível participando da união entre Cristo e a Igreja, que também formam um só corpo. São Paulo referindo-se a esta união dos cônjuges num só corpo, diz aos Efésios: “É precisamente o que Cristo faz para a sua Igreja. Não somos nós membros do seu Corpo?”. O que o Génesis anunciou sobre a união do homem e da mulher, “aplica-se a Cristo e à Igreja” (Efs. 5,30-32). 5. Esta união de Cristo com os discípulos, formando um só corpo, é profundamente esponsal, pois foi anunciada e prefigurada na união do homem e da mulher: Cristo ama a Igreja como uma esposa. A beleza esponsal desta união exprime-se na última manifestação misteriosa do Corpo de Cristo: o Seu corpo eucarístico, que hoje particularmente celebramos. O corpo eucarístico de Jesus é a expressão sacramental do corpo glorioso de Cristo ressuscitado, e contem todas as qualidades essenciais do Corpo de Jesus: é real e não apenas um símbolo ou uma imagem; é o mesmo, que foi gerado no seio de Maria, que anunciou o Reino de Deus, que Se ofereceu, na sua morte, como expressão do infinito amor de Deus por nós; que ressuscitou dos mortos e está à direita do Pai; é esponsal, porque Cristo, esposo da Igreja, lhe entrega continuamente o Seu corpo, como expressão do Seu amor infinito. As núpcias de Deus com a humanidade, vividas por Cristo, na Sua morte, continuam realidade perene na Eucaristia, verdadeiro tálamo nupcial entre o Corpo de Cristo e a Igreja que é o seu corpo. Essa união de amor infinito é a Páscoa, que supõe a passagem do nosso corpo de carne a um corpo transformado pelo Espírito Santo. Verdadeiro cordeiro pascal, Ele é comido como alimento, na refeição em que o drama não impede a festa, com a alegria das núpcias eternas. A Eucaristia é a expressão central da presença de Cristo no meio do Seu Povo, que Ele ama com amor de esposo, nesta fase peregrina da nossa vida de discípulos. Nela reconhecemos o Jesus Profeta, pois nela a Sua Palavra torna-se viva e actual; nela identificamos o Cordeiro Pascal, que se entrega, sempre de novo, como se fosse preciso redimir de novo o mundo; nela experimentamos a surpresa e a alegria da ressurreição; por ela, mergulhamos no amor infinito do Deus Uno e Trino. Ela acompanhar-nos-á até ao limiar da nossa morte e ao recebê-la como viático, podemos viver a nossa morte em Cristo, “morrer para o Senhor”, como diz São Paulo. Só a Eucaristia garante o realismo da presença de Cristo no meio de nós; só ela recorda continuamente à Igreja que é Corpo e Esposa de Cristo; só nela descobrimos a novidade do amor fraterno, na comunhão de amor que é a Igreja. Ela é a síntese de todas as etapas da história da salvação, incluindo a promessa da vida eterna. Oração no encerramento da Procissão do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo Senhor Jesus Cristo, A Igreja de Lisboa, prostrada aos Vossos pés, quer repetir, com devoção renovada, a oração que o Anjo ensinou, há 90 anos, aos três Pastorinhos da Cova da Iria: Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Nós cremos que na forma simples deste sacramento, estais realmente presente no meio de nós, com a Vossa solicitude de Esposo e Bom-Pastor. Acreditar que sois Vós, realmente presente aqui connosco, ainda peregrinos neste mundo, é a expressão mais simples e mais exigente da nossa fé. Quem acredita que Vós estais realmente aqui, acredita facilmente em tudo o que nos ensinastes: que Vós e o Pai sois um só, na unidade do Espírito Santo; que Deus nos ama infinitamente e não nos abandona nas nossas infidelidades e fraquezas; que nos ressuscitará dos mortos, como Vos ressuscitou e nos conduzirá à eterna alegria, nessas moradas eternas que só Vós conheceis. Sentimos que a nossa fé é exigente, embora simples. A intensidade do Vosso amor que aqui sentimos, a alegria interior que nos comunicais, o desejo de adoração que partilhais connosco, os chamamentos que nos renovais, a consolação que nos prodigais nos nossos momentos de sofrimento, fazem-nos acreditar, superam todas as interrogações que a nossa inteligência imperfeita suscita a propósito da Vossa forma de estar. Senhor, aumentai a nossa fé na Vossa real presença; aprofundai a fé eucarística da Igreja de Lisboa. Pedimo-Vos perdão para os que não crêem, sobretudo para aqueles cristãos que consideram a Eucaristia apenas um símbolo, sem o calor e a exigência da Vossa presença real; fortalecei-nos nas nossas dúvidas, não nos desampareis nos nossos momentos de obscuridade. A experiência mostra-nos que quem deixar de acreditar que estais aqui realmente presente, facilmente deixará de acreditar em tudo o que nos ensinastes. Pedimo-Vos o Vosso Espírito Santo, pois sabemos que esta fé só pode ser seu dom. Nós Vos adoramos! Porque acreditamos que estais realmente aqui connosco, adoramos, conVosco, a Santíssima Trindade, aprendendo conVosco a fazer do nosso louvor a participação na Vossa maneira de glorificar o Pai. Ao adorar-Vos, entregamos toda a nossa vida nas Vossas mãos, aceitando a exigência da conversão e a urgência da missão. Ensinai-nos a fazer da Eucaristia a expressão central da nossa adoração. Só assim toda a nossa vida ganhará densidade eucarística, o que quer dizer que toda ela Vos será oferecida e conVosco vivida. Nós esperamos. A Eucaristia é a verdadeira fonte da esperança. Esperamos que o Vosso amor salve o nosso mundo e não permita que se degrade ainda mais; esperamos que protejais a nossa Cidade, que hoje saiu à rua para Vos adorar, inspirando no coração de todos os seus habitantes o desejo generoso de construir a fraternidade e a harmonia; esperamos na fecundidade do Vosso amor por esta Igreja, dando-lhe generosidade para amar e para servir, ardor para anunciar, bondade para perdoar, coragem para sofrer. Esperamos que sejais sempre e em cada momento o nosso Bom-Pastor. Nós Vos amamos. É o dom mais precioso que nos dá a Vossa presença: poder amar-Vos e sentir que nos amais. Nesta presença real, Vós abris-nos o Vosso coração, conduzis-nos para uma profundidade de amor que nenhuma criatura poderia, sequer, suspeitar. Unis-Vos a nós, estais em nós, sentimos o calor da Vossa ternura. No Vosso amor, aprendemos a amar melhor todos aqueles que amamos, pais, filhos, esposos, amigos. Só no Vosso amor aprendemos o amor. É diferente perceber o que nos pedis, quando nos amais: as Vossas exigências tornam-se suaves e os Vossos mandamentos caminhos de felicidade. Só na intimidade conVosco, realmente presente neste sacramento, podemos aprender a amar. O Anjo ensinou as crianças a rezar assim, preparando-as para a visita da Vossa Mãe. Só ela experimentou, em plenitude, esta profundidade de amor. Agradecemo-Vos o dom da Vossa Santíssima Mãe. Sentimo-la sempre connosco quando aprendemos a amar; sabemos que a experiência de amor em que nos introduziu a faz estar mais conVosco, pois só com ela poderemos verdadeiramente dizer: Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Sé Patriarcal, 7 de Junho de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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