Conferência Quaresmal de D. Manuel Clemente

Etapas missionárias da Diocese do Porto: da evangelização feita à evangelização a fazer São da segunda metade do século VI as primeiras notícias episcopais do Porto. Estávamos em plena reorganização da Igreja no Noroeste Peninsular, a partir da acção determinante de S. Martinho de Dume, metropolita bracarense desde 569. Em termos gerais, tinham-se sucedido, desde a chegada do cristianismo, de Sul para Norte do actual território português: a primeira evangelização, em contraste com o Império Romano pagão e perseguidor, até 313; o estabelecimento geral e reconhecido da organização eclesiástica, sob os imperadores cristãos dos séculos IV e V; as invasões bárbaras, desde o princípio do século V, que abalaram o Império e a vida eclesial. Em meados do século VI estávamos no reino suevo, anexado pelos visigodos em 585. Religiosamente falando, subsistia de tudo um pouco: religiosidade espontânea ou “natural”, ligando homem, terra e céu, fogo e água, em conjugação mágica e desejavelmente propiciatória, em torno de divindades que condensavam e activavam tais motivos; sobreposição de divindades e ritos de origem local, com outros trazidos por Roma, de proveniência vária; a fermentação progressiva do Evangelho, como doutrina, piedade e prática, a par da incipiente repartição paroquial. Podemos concluir que, nos inícios diocesanos portucalenses, a evangelização significava aqui quer o impacto da novidade cristã, com a libertação que realmente trazia face à subordinação social, cósmica e temporal das vidas, típica dos paganismos em geral, quer o confronto com as anteriores religiosidades e práticas, muito persistentes aliás. Cabe citar um notável estudioso das origens cristãs e da originalidade que traziam: “O mundo antigo vive de algum modo na obsessão da escravidão. Multidões inumeráveis servem um número muito restrito de homens livres e privilegiados, sem qualquer esperança terrena de se poderem subtrair à sua condição. […] Havia, por outro lado, uma escravidão mais pesada do que a já mencionada, por tocar a todos os homens sem excepção, sem libertação possível: a do destino. O homem da antiguidade não encontra nem na filosofia, nem na religião, o poderoso apoio que a fé na providência oferece a judeus e a cristãos”. (cf. BARDY, Gustave – La conversione al Cristianesimo nei primi secoli. Milano: Jaca Book, 2002, p. 138-139). Para concluir: “Assim se compreende facilmente a alegria que toma os ouvintes da boa nova [cristã]. Para todos os pobres que gemem na escravidão, para todos os desiludidos que sentem pesar sobre si o peso do destino, a palavra liberdade exerce uma espécie de prestígio mágico” (Ibidem, p. 144). Para a evangelização desses tempos seriam absolutamente necessárias quer a existência de mestres capazes de transmitir a autêntica proposta evangélica, quer a criação de comunidades que os respaldassem, com a sociabilidade nova que o Cristianismo trazia. Dito doutro modo, eram necessários mestres e comunidades cristãs (mosteiros e paróquias). No Noroeste Peninsular em que nos integrávamos, tivemos aqui bem perto um desses mestres, que foi precisamente S. Martinho de Dume, depois nosso metropolita. E dele guardamos, além de considerável obra teológica e pastoral, um importantíssimo texto, que realça a originalidade cristã em confronto com as resistências da religiosidade popular remanescente. O documento intitula-se De Correctione Rusticorum, sendo uma carta dirigida por S. Martinho ao bispo Polémio de Astorga, por altura do II Concílio de Braga (572). Propunha-se ultrapassar as persistências pagãs, quanto à consideração de tempos e lugares, quanto às práticas e aos laços inter-pessoais, etc. Pretendia, sobretudo, salvaguardar a liberdade de Deus e dos seus verdadeiros adoradores: “Pouco interessava a Martinho discutir a gravidade de práticas individualizadas e específicas […]. Há sobretudo algo de fundamental que está em risco: nada menos que o culto do verdadeiro Deus. Só a ignorância pode explicar que certas práticas ainda subsistam. De forma muito simples, mas pondo a nu a inconsistência delas, lembra a palavra da Escritura, recorda os compromissos tomados anteriormente no baptismo e propõe actuações fundadas na observância dos mandamentos da lei de Deus” (NASCIMENTO, Aires A. – Introdução. In MARTINHO DE BRAGA – Instrução pastoral sobre superstições populares. De Correctione Rusticorum. Lisboa: Edições Cosmos, 1997, p. 59). Efectivamente, não há evangelização sem conversão dos tempos e lugares à Páscoa de Cristo, que os qualifica e centraliza de modo totalmente novo. Pelo baptismo vive-se já o último ou oitavo dia, percorrendo na luz pascal os dias, as semanas, os meses e os anos. Não é acidental ou acessório que o Domingo seja uma das primeiríssimas instituições cristãs e das mais retomadas propostas da Igreja. A partir do Domingo se projecta cada semana, “até ao Domingo que não tem ocaso”. Interessa muito, a este respeito, a insistência de S. Martinho de Dume na conversão cristã do tempo. Tanto por organizar pascalmente a sucessão dos dias, como por insistir na superação de ritmos meramente naturalistas, aliás marcados pelo paganismo e as suas divindades. S. Martinho anula as divindades pagãs e os tempos a elas dedicados, inculcando um calendário absolutamente pascal, que acabou por se tornar próprio do território hoje português. De igual modo, tentou libertar os laços inter-pessoais, começando pelo casamento, de qualquer referência pagã, bem como abrir os espíritos a uma verdade mais alta sobre Deus e a relação com Ele. Oiçamos algumas frases suas, que nos evidenciarão o que se tentava já no seu tempo e ainda hoje não se conseguiu completar: “Que loucura é, pois, essa que um homem baptizado na fé de Cristo não cultua o dia de domingo, em que Cristo ressuscitou, e afirma cultuar o dia de Júpiter, de Mercúrio, de Vénus e de Saturno, que não são senhores de qualquer dia. […] Não mandou Deus que o homem conhecesse o futuro, mas que, vivendo sempre no seu temor, esperasse d’Ele orientação e auxílio para a sua vida” (De Correctione, p. 113 e 115). E, mais adiante: “Como é que alguns de vós, que renunciaram ao demónio e aos seus anjos, e aos seus cultos e às suas obras más, agora voltam ao culto do diabo? Pois acender velinhas a pedras, a árvores e a fontes e pelas encruzilhadas, o que é isso senão culto ao diabo? […] As mulheres invocarem Minerva no tear, e observarem o dia de Vénus para o casamento, e atenderem ao dia em que se sai para viajar, que outra coisa é senão culto ao diabo? […] Deixastes de lado o sinal da cruz que recebestes no baptismo e apegais-vos a outros sinais do diabo, por aves e espirros e muitas outras coisas. […] Porque, onde tiver primazia o sinal da cruz, o sinal do diabo não é nada. Porque vos faz mal a vós? Porque desprezais o sinal da cruz e receais aquilo que vós próprios preparastes como sinal” (De Correctione, p. 121). E, sobre o Domingo: “Sede assíduos a orar a Deus, na igreja ou em locais dedicados aos santos. O dia do Senhor, que, por isso mesmo se chama domingo, dado que o Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, nele ressuscitou dos mortos, não o desrespeiteis mas cuidai-o com reverência. Trabalho servil […] não o façais em dia de domingo […]. No dia do Senhor é permitido ir a sítios próximos, mas não para ocasiões de pecado, antes de boas acções, como seja, ir a locais santos, visitar um irmão ou amigo, assistir um doente ou levar um bom conselho a um atribulado ou ajuda para boa causa” (De Correctione, p. 123). Não é difícil constatar a persistência dalgumas daquelas crenças e práticas entre nós, milénio e meio depois… Mas tenhamos em conta alguns pontos: 1º) Foram em geral reavaliadas a partir da grande liberdade que o Cristianismo trouxe em relação ao determinismo naturalista e pagão antecedente; 2º) Foram, em muitos casos, coloridas com motivos cristãos, com maior ou menor penetração da “cor”, assim continuando ainda, numa fronteira difícil entre a inculturação e o disfarce; 3º) Podem ser hoje reduzidas a motivos regionalistas, de convívio ou de mera curiosidade “cultural”. São questões com que temos de lidar, tão crítica como positivamente, numa religião de incarnação. A realidade divina é-nos oferecida na humanidade, com tudo o que esta transporta, mesmo em termos de espontaneidade ou cultura. Acrescento, neste sentido, três apontamentos breves. O primeiro é esclarecedor e oportuno, por se referir a Nun’Álvares, numa passagem sua pelo Porto, aquando das guerras com Castela. Evidencia tanto a persistência daqueles medos e crenças ancestrais, como a sua superação por um jovem medieval cristãmente livre: “E indo já fora da cidade [do Porto] seu caminho a sua azémola da cama saiu de trás de toda a gente. E saindo por uma porta da cidade que chamam do Olival: por onde o Condestável saíra a azémola com a cama caiu morta em terra o que todas as gentes houveram por maravilha e grande sinal: e disseram isto ao Condestável: dizendo-lhe ‘que por tal sinal não era bem ir adiante: e que se tornasse’: e ele não curou daquilo nada. E mandou que pusessem a cama em outra besta e se fossem após ele” (Cf. Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira. Revisão, prefácio e notas por Mendes dos Remédios. Coimbra: F. França Amado, 1991, cap. XLIII, p. 106). O segundo é retirado dum significativo texto de José Mattoso, indiscutível mestre das raízes da nossa nacionalidade e cultura, com especial referência à implantação medieval do Cristianismo no território nortenho: “Trata-se […] de lembrar que o sucesso do cristianismo na Europa não foi apenas obra do zelo missionário dos pregadores do Evangelho, mas também da sua capacidade para conciliarem a mentalidade pagã com a cristã naquilo que ela tinha de aceitável ou de positivo e de um extraordinário realismo na aceitação de uma forma de ver o mundo que não podiam alterar de um dia para o outro. Ou seja, o método missionário usado pelos que converteram a Europa ao cristianismo não foi apenas o da assimilação dos pagãos, mas também o da descoberta do que havia de válido na cultura e na civilização pagãs” (MATTOSO, José – Raízes da missionação portuguesa. In CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MISSIONAÇÃO PORTUGUESA E ENCONTRO DE CULURAS – Actas. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1993, vol. 1, p. 67-68). O terceiro é um apontamento que fiz há anos, aliás resumindo uma partilha pastoral com vários padres, sobre critérios e modos de agir a este propósito: “Não se trata de negar, mas de salvar estas realidades [a nossa terra, o nosso sangue e os nossos mortos], que definindo-nos como criaturas, ainda não são a verdadeira filiação divina. […] No concreto da acção pastoral da Igreja isto significa uma consideração positiva da religiosidade espontânea, ou seja do apelo que ‘terra, sangue e mortos’ fazem sempre pela boca de quem nos procura. Mas significa também a abertura desta realidade às dimensões novas que Cristo lhe dá. Ele, que partiu de Nazaré […] e disse à Samaritana que o verdadeiro culto tanto se faria no Monte Garizim como em Jerusalém, ou onde houvesse ‘adoradores em espírito e verdade’; que disse que a sua verdadeira família é a ‘dos que escutam a palavra de Deus e a pões em prática’; que deixou ‘os mortos enterrarem os mortos’ para nos libertar a memória, mesmo quando acompanhamos os defuntos, em funeral ou sufrágio. Nada disto se recusa; mas tudo se converterá, na liberdade dos filhos de Deus” (CLEMENTE, Manuel -, A fé do povo. Compreender a religiosidade popular. Apelação: Paulus Editora, 2002, p. 100). Sé do Porto, 19 de Março de 2009 Manuel Clemente

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