Conferência do Bispo do Porto no Fórum Amarante XXI

De como uma boa estratégia para a cidade contribui para uma nova cidadania

1. A cidade[1], só por si, não gera cidadania[2]; antes é gerada, ou alimentada, por esta, definhando com a sua falta. Falo de cidadania enquanto sentimento comum, corresponsabilidade e participação. Falo também de necessidades comummente sentidas e repartidas, que só em conjunto se resolvem. Um breve relance histórico poderá ilustrar esta asserção:

Referindo o que nos toca directamente, em termos de cultura e civilização, há dois milénios estávamos integrados no Império Romano, marcadamente urbano. Tudo começara na própria Roma, desde os seus primórdios oito séculos antes: pequeno núcleo rural dalgumas colinas do Tibre, que, pouco a pouco, mercê de lutas e alianças com vizinhos cada vez mais distantes, deu lugar a um grande pólo de governo e consumo. No século I da nossa era rondava o milhão de habitantes, número extraordinário na altura.

Formalmente, entreteceu-se um conjunto de regras que, evoluindo para integrar as realidades novas com que Roma se expandia, originou o Direito Romano, que ainda hoje está na base dos nossos ordenamentos jurídicos. Digamos, então, que foi a existência dum núcleo coeso e expansivo que gerou e acrescentou a cidade; e que esta “cidadania” tanto se formalizou no Direito como se plastificou no espaço urbano, em edifícios, praças e ruas que igualmente se tornaram habituais e clássicos, Império fora.

Simultaneamente, o desenvolvimento urbano criou um tipo específico de relação cidade – campo, cada vez mais alargada também, à medida do alastramento do Império por todas as margens do Mediterrâneo (por exemplo, o Egipto foi considerado o “celeiro do Império”, donde vinha trigo para Itália). No Baixo Império, a cidadania romana também se estendeu à generalidade da população livre, a viver em cidades padronizadas por Roma, a “urbe” por excelência.

Num espaço tão dilatado, a cidadania acabou por ser também formal, mais ligada ao enquadramento numa lei comum e a autoridades centrais, como dalgum modo se exemplificou nas estátuas oficiais, que podiam ser as mesmas, só mudando as cabeças dos sucessivos titulares. Ainda hoje é relativamente “fácil” aos arqueólogos reconstituírem uma cidade romana a partir dum pequeno trecho dela, tão formalizada ficou também a arquitectura, segundo os cânones de Vitrúvio.

2. Depois, Roma seguiu a sorte dos impérios, quando a imensidão ocupada se tornou ingovernável, quer pelo enfraquecimento da administração quer pelo embate dos invasores. No caso do Império Romano do Ocidente, o seu fim (século V) não significou a anexação por outro, também em torno de cidades, mas a instalação de tribos nómadas e belicosas, que precipitaram o fim da administração, da segurança e do comércio, mais ou menos normais até então.

Começava a Idade Média, que esperou pelo século XII para reencontrar núcleos urbanos significativos. A dispersão humana e a ruralização geral da Alta Idade Média (séculos V – X) originaram outro tipo de agregação e convivência, com plastificação correspondente.

Não já em torno do fórum nem do anfiteatro, mas guardadas em castelos ou em adro estreito da igreja ou mosteiro, as povoações mais significativas da altura conviviam com espaços rurais mais próximos, pouco passando o dia de viagem. Por exemplo, até 1607 a cidade do Porto tinha uma única freguesia, ligada à sua sé – fortaleza, dentro das muralhas trecentistas.

E a agregação social fazia-se na relação de dependência com um senhor a quem se servia enquanto vassalo, confiado na sua protecção. Vinculação pessoal, mais do que formal, podemos dizer, até que o desenvolvimento dos Estados modernos fosse alargando a dependência geral em relação a poderes unificados e centralizados. As cidades modernas, especialmente as capitais, abriram-se depois junto dos espaços de referência e soberania, como o Terreiro do Paço quis ser na Lisboa setecentista.

Vivendo do que o comércio mais ou menos próximo – ou ultramarino, desde o século XV – lhes trazia, as cidades ligavam-se aos portos, quando eram ribeirinhas, ou mantinham lugares habituais de feira e mercado, como os nossos rossios atestam.

O Direito moderno e contemporâneo formalizou também uma cidadania de participação, aliás exigente: ser cidadão e não súbdito é um ganho inquestionável, mas também um encargo muito sério. O que também se há-de reflectir na urbanização, para que esta não contraste nos espaços, nas construções e nos equipamentos com a igualdade e a dignidade comuns, que os códigos democráticos estipulam.

3. Mas não voltaremos à antiga Roma. Impede-o, além do curso acelerado dos tempos e das circunstâncias tão diversas, a individualização reinante nas sensibilidades e possibilidades. De tal modo que tudo se altera e inova, nem sempre em termos de cidadania propriamente dita[3].

Aparentemente, até pelo contrário. Na verdade, a rede informática, o êxodo de fim de semana, a itinerância profissional e habitacional, entre mais factores, esbatem as vinculações tradicionais e ainda não configuram a cidade futura, podendo até diluir a corresponsabilidade cívica. Não admirará, portanto, que os centros históricos sejam abandonados e os novos centros sejam sobretudo “comerciais” e sem vinculação comunitária. Aliás, as grandes aglomerações pessoais tornam-se também mais fugazes, mudam sucessivamente de espaço e incidem no consumo ou na diversão.

Por outro lado, a crescente concentração megaurbana não parece valorizar nem o fórum central nem o ritmo cívico comum. De tal modo que o chamado “caos urbano” manifesta quase directamente a complexa morfologia dos nossos aglomerados.

Positivamente, quero entrever cidades policêntricas, mais inter do que mono-urbanas, conectando o particular e o geral, também pelos media. O que, por outro lado, nos deve levar à valorização de todos os grupos intermédios, potenciando a subsidiariedade social em benefício dum todo, que será decerto diferente, mas não deverá ser menos solidário, em termos de cidadania activa, também na relação com o campo, de agricultura ou fruição.

Daqui decorre a necessidade de facilitar a comunicação intra e interurbana, de valorizar encontros sectoriais e gerais de sociedade e cultura, de relacionar o ensino com a integração social.

A cidade do futuro só pode ser fruto ou manifestação da cidadania reencontrada: também a que refaremos.

Amarante, 19 de Junho de 2010

Manuel Clemente

 

[1] Atenda-se à definição: “Do ponto de vista da geografia urbana a cidade pode considerar-se como um meio geográfico em contínuo devir, que se caracteriza por uma conurbação durável de uma população, que em espaços diversificados de utilização definida (estruturas urbanas) se entrega a actividades diversas e intencionais, produtoras de bens e fornecedoras de serviços (funções urbanas) para satisfação de necessidades vitais e morais que ultrapassam o âmbito do seu restrito espaço e da população nele residente para interessarem uma maior área que constitui com a respectiva população a sua área de influência” (OLIVEIRA, J. M. Pereira de – Cidade. POLIS. Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado. Lisboa / São Paulo, 1983, vol. 1, col. 829-830).

[2] Sobre a cidadania e o seu devir histórico: “A cidadania (o status civitatis dos romanos) é o vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertinência de um indivíduo a um Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações. […] na Idade Média, o vínculo a que nos reportamos, que é perpétuo, traduz sobretudo a dependência política (allégeance) do indivíduo (súbdito) ao suserano, sendo constitutivo de uma relação de subordinação da qual decorria para aquele, em contraponto aos deveres de fidelidade e vassalagem, a possibilidade de beneficiar, face aos demais poderes, da protecção do seu senhor. Com a formação do Estado moderno e o advento da Revolução Francesa, no entanto, a realidade vai-se progressivamente aproximando dos termos em que atrás definíamos a cidadania: por um lado, a vinculação estabelece-se não já entre dois indivíduos […], mas entre o indivíduo e uma comunidade organizada (o Estado); por outro lado, o estatuto dela decorrente deixa de analisar-se tão-só numa relação de subordinação e dominação para conter também, como lado positivo, uma relação de participação (desaparece o súbdito sobre quem recaíam os deveres acima indicados para dar lugar ao cidadão, participante activo e determinante nos destinos da cidade)” (RAMOS, R. M. Moura – Cidadania. Ibidem, col. 824-826). Sendo igualmente interessante e clássica a definição agostiniana: “Povo é a união duma multidão de seres racionas associados pela participação concorde nos bens que amam” (SANTO AGOSTINHO – A Cidade de Deus, Livro 19, cap. 24). E ainda, para sublinhar que a cidadania só se constrói além de cada um: “Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si – a celeste. Aquela glorifica-se em si própria […] dominada pela paixão de dominar – nesta servem mutuamente na caridade: os chefes dirigindo, os súbditos obedecendo” (ibidem, Livro 14, cap. 28).

[3] Como se conclui do que sucedeu quanto à habitação, em meados dos século XX, em França e não só: “… não é excessivo falar de revolução para designar a mudança que se deu nas condições de habitação da grande maioria dos franceses. Com a casa moderna, composta de várias divisões, geralmente independentes, com as utilizações modernas da água e do aquecimento, cada membro da família pode apropriar-se de um espaço pessoal. A generalização dos tempos livres […] proporciona o tempo de viver nesse espaço apropriado. A vida propriamente familiar concentra-se em momentos precisos – as refeições, o domingo – e em lugares precisos – a cozinha ou o que os arquitectos, depois da guerra, chamam o living room. A existência divide-se em três partes desiguais: a vida pública, essencialmente de trabalho, a vida privada familiar e a vida pessoal, ainda mais privada” (PROST, Antoine – Fronteiras e espaços do privado. In História da vida privada. Dir. Ph. Ariès e G. Duby. Porto: Afrontamento, 1991, vol. 5, p. 76).

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