Conferência de D. Jorge Ortiga no Congresso Missionário Nacional

«Missão Universal e Igreja Particular» Há pontos doutrinais que são nevrálgicos para intuir a vida e a missão da Igreja, no seu todo ou em determinados aspectos. Existem, com efeito, alguns princípios que são verdadeiros pilares sobre os quais se constrói todo o edifício eclesial. Nesta ordem de ideias é elucidativo quanto o Concílio Vaticano II nos refere: “A Igreja é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na “missão” do Filho e do Espírito Santo. Este desígnio brota do “amor fontal”, isto é, da caridade de Deus Pai, que, sendo o Princípio de quem é gerado o Filho e de quem procede o Espírito Santo pelo Filho, quis derramar e não cessa de derramar ainda a bondade divina, criando-nos livremente pela sua extraordinária e misericordiosa benignidade, e depois chamando-nos gratuitamente a partilhar a sua vida e glória. Quis ser, assim, não só criador de todas as coisas mas também “tudo em todas as coisas” (1 Cor. 15, 28), conseguindo simultaneamente a sua glória e a nossa felicidade” (A.G. 2). Porque Deus quis ser tudo em todos enviou os Apóstolos dizendo: “Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo quanto vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos” (Mt. 28, 19.20). Daí que a Igreja faz seu este mandamento solene de Cristo e continua, como constitutivo do seu ser, a enviar arautos, para que as novas igrejas se formem. A Igreja particular cresce na missionaridade Se a Igreja se realiza na missão esta acontece na Igreja Universal e, dum modo mais eloquente, na Particular que se edifica a partir deste mandato e cresce na medida em que o assume como estruturante de toda a vida. Perspectivando a missionaridade como alma da Igreja particular, a actualidade obriga-nos a reconhecer diversos âmbitos onde ela acontece. Só a humanidade é o horizonte da missão eclesial mas, em simultâneo, deparamos com uma nova e plurifacetada situação nos espaços ditos cristãos. São muitos aqueles que não ouviram falar da Boa Nova ou mal ouviram falar dela; outros seguem religiões estranhas ao conteúdo cristão; um número crescente nega a existência de Deus ou chega mesmo a ataca-Lo; na actualidade deparamos com multidões que vivem como se Deus não existisse ou recorrem a Ele em momentos sociais mas sempre sem compromisso ou experiência vital. É neste cenário novo que a Igreja particular deve interpretar a sua natureza missionária. Tem o dever de olhar para a Igreja Universal na responsabilidade de chegar a todos os povos, mas nunca poderá ignorar o que acontece dentro dos seus confins. Hoje, a missão ad gentes, em certo sentido, confunde-se com a missão nos confrontos com a indiferença. Talvez seja este um novo desafio a interpelar a Igreja. A missão esta à porta das catedrais e terá de acontecer no meio de tradições religiosas, ligadas a uma maior ou menor religiosidade popular, que manifesta alguma coisa de positivo mas, em muitos casos, pouco ou quase nada, de experiência cristã. Hoje são os baptizados, com todos os sacramentos de iniciação e itinerários catequéticos adequados, que necessitam de enviados para um encontro coerente com Cristo e uma integração responsável na Igreja. A ilusão ainda continua muito presente e o engano pode distrair-nos através dum activismo que não incide nas pessoas e na cultura. Sem desconsiderar estes parâmetros característicos dum mundo globalizado e secularizado, importa que a dimensão ad gentes não seja esquecida. Uma não dispensa a outra. Integram-se e condicionam-se. Alertas do Conc. Vat. II Depois desta síntese que situa a missão nos nossos contextos católicos, olhemos um pouco para a índole missionária da Igreja particular através de algumas coordenadas já lembradas pelo Concílio na Lumem Gentium (L.G 23). 1. “Cada um dos Bispos, quanto o desempenho do seu próprio ministério o permitir, está obrigado a colaborar com os demais Bispos e com o sucessor de Pedro, a quem, dum modo especial, foi confiado o nobre encargo de propagar o cristianismo”. Numa Igreja “casa” e “escola” de comunhão, esta deve tornar-se efectiva como vivência duma autêntica colegialidade e efectiva como partilha de responsabilidades e bens para o testemunho duma unidade eclesial. 2. Esta colaboração não pode ser meramente teórica. A comunhão torna-se visível através de, entre outras coisas, “subministrar às missões, não só operários para a messe, mas também auxílios espirituais e materiais, tanto por si mesmos directamente como fomentando a generosa cooperação dos fiéis”. Explicitemos um pouco com referências conhecidas. Podem tornar-se pretexto para um exame de consciência e nunca sublinhamos em demasia o evidente. Por o ser pode estar esquecido. Nesta solicitude, o Bispo, e nele a Igreja Particular, é responsável por toda a Igreja o que pode significar tornar possível que alguns sacerdotes, durante algum tempo ou definitivamente, partam para as missões ou dioceses com carência. Esta é uma realidade que vai tendo alguma aplicação entre nós mas que exige que a dimensão missionária, neste sentido, seja colocada nos programas de formação dos Sacerdotes Diocesanos. A carência é generalizada; quando se dá, enriquece-se e a recompensa pode acontecer. Se os sacerdotes são os operários privilegiados, os leigos devem reconhecer, como exigência dum cristianismo assumido, este projecto missionário como proposta de Cristo para bem de todos. A sua vocação é, essencialmente, secular, mas as exigências materiais, de âmbito diversificado, podem exigir a sua competência profissional e/ou a generosidade duma fé viva. Trata-se dum filão que já tem proporcionado muitos bons resultados mas ainda está longe duma visibilidade mais generalizada. Por outro lado, e referindo um lugar comum, a responsabilidade duma Igreja particular tem de chegar a uma cooperação e comunhão através dum conhecimento das necessidades materiais e partilha dos bens que são indispensáveis para a dilatação do Corpo de Cristo. As pessoas são imprescindiveis. A coragem de “ver” cenários que envergonham responsabiliza e compromete. A solidariedade efectiva foi sempre apanágio das nossas comunidades. As crescentes desigualdades sociais e humanas interpelam as consciências e não permitem que nos gloriemos do passado ou que apenas sejamos capazes de reagir perante a dramaticidade de catástrofes naturais. 3. Para que a relação entre a Igreja Particular e a Universal seja efectiva, há uma condição prévia a tudo que condiciona a acção no presente e no futuro. Trata-se da formação duma consciência missionária nas pessoas e nas comunidades paroquiais. Poderia escolher muitas citações dos papas ou dos documentos da Igreja. Continuo no Ad Gentes. “Na sua diocese, o Bispo, que forma uma só coisa com ela, ao suscitar, promover e dirigir a obra missionária, torna presentes e como que palpáveis o espírito e o ardor missionário do Povo de Deus, de maneira que toda a diocese se torna missionária”. Daqui podemos concluir que o trabalho do Bispo se deve orientar para tomar a diocese missionária (AG 38). São palavras elucidativas e que continuam como programa. Talvez tenhamos de reconhecer que muito pouco foi efectuado e urge insistir nesta ideia que expressa a índole missionária da Igreja e das suas comunidades. Não se trata de algo opcional ou facultativo. Uma Igreja que se fecha estiola e perde o dinamismo que a vida supõe e espera. O Código do Direito Canónico sintetiza esta doutrina dum modo eloquente: “Sendo toda a Igreja por sua natureza missionária e a obra da evangelização dever fundamental do povo de Deus, todos os fiéis, cônscios da sua própria responsabilidade, assumam a sua quota-parte na obra missionária” (can. 781). “Todos e cada um dos Bispos, como responsáveis pela Igreja Universal e por todas as Igrejas, tenham solicitude peculiar pela obra das missões, sobretudo suscitando, fomentando e apoiando as iniciativas missionárias na própria Igreja particular” (can. 782 § 2). Os elementos são eloquentes. Urge que integrem o pensamento católico e que não surjam como alíneas duma mentalidade que, esporadicamente, se abre a outras considerações. As paróquias com rosto missionário São orientações muito claras. Penso, porém, que, num contexto português, tudo passará por dar as paróquias um rosto missionário. A Diocese será missionária se a paróquia cresce e vive ao ritmo da missionaridade tornando visível um compromisso com a Igreja Universal e com a indiferença local. Para que seja verdadeiramente missionária necessita de algumas decisões de fundo que sejam capazes de qualificar o seu caminho eclesial. Impõe-se uma verdadeira conversão pastoral de modo que toda a dinâmica pastoral paroquial tenha esta marca ou conotação missionária, dum modo explícito ou como substracto que acompanha todo o seu agir. Esta conversão pastoral fará com que a partir de Cristo a comunidade paroquial sinta a alegria de condividir e partilhar a fé de tal maneira que a evangelização do mundo não seja privilégio duns poucos, os chamados missionários, mas apanágio de toda a comunidade. A comunidade vem a beneficiar com esta mudança de mentalidade que leva a descobrir uma autêntica tensão missionária capaz de superar as acções prevalentemente orientadas para conservar o existente projectando-se para o exterior e levando o anúncio de Cristo a todos. Com este dinamismo chegaremos a poder afirmar que estamos perante uma “pastoral de missão permanente” como resposta ás exigências da actualidade. Esta conversão pastoral sintoniza com as exigências de formar cristãos crentes testemunhas e educadores da fé. É desafio para os nossos espaços e certeza de que os horizontes se vão alargando. Tudo será possível se for acompanhado por uma promoção duma espiritualidade de comunhão que se concretiza como verdadeiro princípio educativo “a viver em todos os lugares onde se plasma o homem e o cristão”. Quando a paróquia consegue assimilar a sua pastoral como missionária, no seu território, ela torna-se capaz de projectar-se no horizonte do mundo, numa verdadeira aposta de evangelização dos povos. Síntese-conclusiva: criar discípulos-missionários De 13 a 31 de Maio de 2007 tive a oportunidade de participar na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e das Caraíbas. A Conferência tinha um programa muito interessante: “Discípulos e Missionários de Jesus para que os nossos povos tenham vida n’ Ele”. Os trabalhos iniciaram-se com uma tendência de descortinar os conteúdos de discípulo e missionário dum modo separado e distinto. A reflexão conjunta, em experiência de comunhão sinodal e de preferência em grupos para uma mais efectiva colaboração, cedo sentiu de conjugar as duas realidades numa alternância de nomes com o mesmo valor. Ser discípulo é ser missionário e daí falar de discípulo missionário ou missionário discípulo. Onde está um discípulo aí está um missionário o que faz com que toda a comunidade seja “sujeito primordial da missão” na diversidade de carismas e ministérios e todo o cristão, como consequência do seu baptismo e pela força do Espírito na Confirmação, é missionário. Assim como no dia de Pentecostes o Espírito Santo alargou os horizontes da timidez dos Apóstolos, hoje abre sempre os crentes à tarefa missionária. Daí que na paróquia, para chegar à diocese e, por esta, interagir na Igreja universal, é imperioso criar uma nova mentalidade e consciência. A evangelização orienta-se para este fim e todos os momentos e actividades devem ser caracterizados por este dinamismo. A missão convoca a todos e todos, sem excepção, somos agentes evangelizadores o que significa que o cristão é alguém disponível, sentindo-se chamado por Deus para isso, a dar a vida pelo Reino investindo as suas iniciativas na acção missionária da Igreja. Convocados para a missão vivêmo-la em qualquer lugar como trabalhadores de Deus e quando vivemos a corresponsabilidade dentro das actividades comunitárias estamos a ser interpretes desta comum responsabilidade. Dizia-se na Aparecida: “O discípulo missionário só se entende como um caminho quotidiano de presença activa e fecunda na sociedade para servir com Jesus e comunicar a vida que recebemos do Senhor”. Se todos são convocados para missão, esta realiza-se em todos os âmbitos da vida real. Não existe espaço ou ambiente humano que não necessite e não possa ser tocado pela luz da evangelização. Não há espaços neutros ou campos do adversário onde não se pode chegar. Qualquer situação humana encerra a descoberta duma orientação para a salvação humana no que Cristo quer dar e oferecer. De harmonia com estas ideias, é paradigmático que os Bispos da CELAM tenham decidido, depois de muito diálogo e votações, realizar uma “Grande Missão Universal”. Era grande a Missão pois comprometia solenemente a Igreja e era Universal porque queria chegar a todos os lugares (onde já chegou o nome de Cristo ou não) e a todos os ambientes humanos que já se encontraram com Cristo ou esperam, talvez inadvertidamente, este encontro pessoal gerador de felicidade e realização humana. Sei que está em curso e que todas as dioceses se comprometeram. Como e quando teremos comunidades estruturalmente missionárias para um encontro com Cristo? A Igreja particular deverá assumir como encargo primordial a tarefa de gerar cristãos que sejam discípulos missionários. Com estes e através destes a Igreja Universal terá um rosto missionário como comunidade reveladora de Cristo. Para nós, portugueses, há, ainda, uma realidade histórica que nunca podemos esquecer. Não é realidade a desconsiderar esta pertença a um povo missionário que deu lições ao mundo. A história corresponsabiliza e determina as opções da actualidade. Maria, estrela da Evangelização Ao terminar as minhas considerações, muito comuns e conhecidas, penso ser oportuno uma referência que motive e desinstale. Precisamos de nos centralizar em quem foi discípulo – acolhendo e identificando-se com a Palavra – e missionário partindo apressadamente pelos caminhos íngremes e obscuros da modernidade para aí depositar o testemunho e proclamar as maravilhas que Deus realiza. Maria é estímulo a viver a Boa Nova com alegria, interpelação para um encontro libertador com Cristo, lição para que sejamos solidários com a história do nosso povo e de todos os povos e força para crescer no ardor apostólico duma autêntica missão evangelizadora. Desde os inícios da história da Igreja foram imensos aqueles que encontraram em Maria a referência certa para serem autênticos discípulos missionários. Que se torne verdadeira estrela da Evangelização dando-nos “força para anunciar com coragem a Palavra”. “Maria, Mãe dos discípulos missionários, caminha connosco. Fáz-lo como discípula porque acreditou firmemente que o que fora anunciado pelo Senhor se realizaria. Faz-lo como missionária, porque – diferente dos apóstolos que proclamavam a Palavra – dá à luz Jesus, Palavra de Deus, conteúdo da proclamação apostólica. Caminha connosco como mulher solidária, porque oferece seu ser, sua intercessão para atender as nossas necessidades. Caminha como nova Arca da Aliança, habitada pela Palavra viva de Deus e como serva do Senhor, que por sua escuta e obediência tem a experiência de grandes coisas que o Poderoso faz nela e com ela. Ela é em tudo modelo do discípulo missionário que abre a sua vida ao acontecimento salvífico trinitário. Maria, a mãe da Igreja, acompanha os apóstolos e os discípulos no Pentecostes. Com eles espera a luz plena que provem do Espírito (Cf. Jo. 14-25). Como eles, realiza o processo característico duma fé que cresce na compreensão e prática do projecto Salvador do Pai (cf. Lc. 8, 15-21). (V Conferência General – Síntese de los apostes recibidos, pág. 167-168). Que a Imaculada Conceição, que primeiro concebeu Jesus no seu coração e depois em suas entranhas, seja mãe e modelo de fecundos discípulos missionários e de significativos itinerários pastorais e espirituais para que todos os povos, que tanto veneram Sua Mãe, tenham vida em Cristo. Fátima, Congresso Missionário, 07.09.2008 † D. Jorge Ortiga

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