Como uma Família

José Manuel Pureza considera que a Mensagem da Paz de Bento XVI amarra o combate pela paz à intensidade humana das relações familiares “(…) a celebração deste Dia proporcionou ao longo dos anos a possibilidade de a Igreja desenvolver, através das Mensagens publicadas para tal circunstância, uma doutrina elucidativa em defesa deste bem humano fundamental” (Bento XVI). Com efeito, no começo de cada ano, os Dias Mundiais da Paz tornaram-se em marcos densos de reflexão sobre os caminhos e descaminhos do mundo e em suportes do combate essencial pela paz. A mensagem de Bento XVI para o próximo Dia Mundial da Paz assume plenamente esse desígnio. As violências que marcam o nosso quotidiano, em todas as escalas – sejam físicas, estruturais ou culturais – são o avesso de uma condição familiar. A paz não é arranca da eliminação das diferenças nem da erradicação dos conflitos que essas diferenças eliminam. Tal como a solidez da vida de um casal se testa nos momentos de tensão, assim também o lugar dado à paz se afere diante de conflitos que atravessam as nossas sociedades. Não é de matar os conflitos nem de suprimir as diferenças que se trata. O alicerce da paz é a educação para os conflitos e as diferenças, a aprendizagem de que as diferenças são um bem, de que os conflitos são ocasião de crescimento, mas que nada disso legitima a queda na tentação fácil da violência. E que o caminho da paz é portanto o de uma organização das relações sociais, em todos os espaços, que rejeite a violência, seja esta de carácter directo ou revele-se ela nas regras de funcionamento corrente dos colectivos. A vivência familiar, sugere o Papa, é uma referência forte para este bom combate. “Com efeito, numa vida familiar ‘sã’ experimentam-se algumas componentes fundamentais da paz: a justiça e o amor entre irmãos e irmãs; a função da autoridade manifestada pelos pais; o serviço carinhoso aos membros mais débeis, porque pequenos, doentes ou idosos; a mútua ajuda nas necessidades da vida; a disponibilidade para acolher o outro e, se necessário, perdoar-lhe”. Ora, recordando a lição conciliar de que a humanidade inteira constitui uma só comunidade, Bento XVI amarra o combate pela paz à intensidade humana das relações familiares, traduzida em gratuidade, frater-nidade, solidariedade e sentido de bem comum e de justiça. Uma cultura da paz que se queira genuína ou arranca de uma conversão pessoal e social alicerçada nesta ordem de valores ou permanecerá refém de uma guerra fria do pensamento que a esvaziará de alcance realmente transformador. É esta mesma radicalidade de transformação que o Papa explora nesta mensagem, em três domínios fundamentais. O primeiro é o do ambiente: “a família precisa de uma casa, dum ambiente à sua medida onde tecer as suas próprias relações. No caso da família humana, esta casa é o ambiente”. Recado certeiro para uma humanidade que teima -como acaba de se confirmar na conferência realizada em Bali – em dar primado aos interesses individuais de curto prazo em detrimento das mudanças de políticas económicas e dos modelos de desenvolvimento. O segundo campo é precisamente o da economia: “a família experimenta autenticamente a paz quando a ninguém falta o necessário, e o património familiar (…) é bem gerido na solidariedade”. Em tempo de endeusamento do capitalismo sem rosto, em que a eficiência económica é elevada ao altar e em que a justa distribuição da riqueza e o destino universal dos bens tendem a ser olhados como teimosias ideológicas, o recado do Papa precisa de ser ouvido por todas as comunidades cristãs. Por fim, o terceiro domínio de concretização é o do armamento: “temos vastas áreas do planeta envolvidas em tensões crescentes, enquanto o perigo de se multiplicarem os países detentores de armas nucleares cria motivadas apreensões em toda a pessoa responsável”. A responsabilidade de todos – ricos e pobres – na centralidade da indústria de armamento no mundo contemporâneo justifica plenamente que Bento XVI invoque a obrigação de levarmos a sério a nossa condição de família planetária para que se encontrem os caminhos do desarmamento e da não proliferação de arsenais de grande poder destruidor. A paz é o caminho. Percorramo-lo como membros da mesma família. José Manuel Pureza, Professor Universitário

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