«Communio» lança fascículo dedicado à acção social da Igreja

O fascículo da Revista «Communio» sobre a acção social da Igreja chega aos leitores sob o signo de uma dupla oportunidade: depois da publicação da recente encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, que enriquece o corpus do magistério romano, procurando integrar a doutrina social da Igreja numa mais vasta tradição teológica, enraizando-a mais explicitamente na mensagem cristã (H. Noronha Galvão); e no contexto de uma crise internacional, que desvelou o rosto das vulnerabilidades sociais das nossas sociedades, “novas” e “velhas” situações de carência que os acontecimentos recentes agravaram (Alfredo Bruto da Costa).

A pertinência das questões sociais está inscrita no “código genético” da experiência cristã. As primeiras gerações de cristãos hesitaram entre a constituição de comunidades fechadas sobre si, vivendo numa lógica de reciprocidade que antecipasse as “coisas que estavam para vir”, e a disseminação no mundo greco-romano. Numa das vias preponderantes, de que a evangelização paulina dá testemunho, os cristãos escolheram itinerários de inserção nas redes e capilaridades próprias da romanidade urbana, tendo como base social o agregado familiar (oikos). A partir dessa opção, inseriram-se no tecido social de uma forma singular: a metáfora do “estrangeiro” serviu para traduzir a sua condição de cidadãos plenamente responsáveis pela cidade terrena, vivendo embora essa cidadania a partir de sentidos que ultrapassam o horizonte intra-histórico.

Nesta trajectória, gregos, romanos, judeus, etíopes, escravos e homens livres, homens e mulheres passam a identificar-se como cristãos a partir de um novo regime de solidariedade (baptismal) que ultrapassa as barreiras sociais que estruturavam as sociedades mediterrânicas da antiguidade tardia. Esse novo paradigma encontra uma particular explicitação na forma como face ao “pobre”, dir-se-ia o humano simplesmente humano, se concretiza o ethos do cuidado próprio do mandamento do “amor ao próximo” (como Luísa Almendra sublinha, na sua leitura exegética da célebre parábola, o homem socorrido pelo Samaritano não é caracterizado nem pela religião, nem pela raça ou condição social, é identificado apenas pela situação em que se encontra).

Nas comunidades cristãs, a expressão do “cuidado” desenvolveu-se a partir de uma experiência singular: a diaconia. A reflexão sobre a dimensão diaconal da Igreja é essencial para que se perceber que estamos perante a articulação da sua própria identidade e missão (J. E. Borges de Pinho). As concretizações desta dimensão vão depender da forma como se relacionam estas duas vias de construção histórica da identidade cristã: as formas de solidariedade que organizam a comunidade dos cristãos e a solicitude dessas comunidades face ao “mundo” (oikoumene).

Historicamente, o cristianismo foi reinventando as suas formas de inscrição social, aprofundando as consequências do mandamento evangélico do “amor ao próximo” (G. Laiti, J.-R. Armogathe, Y.-M. Hilaire). Neste âmbito, há que ter em conta não só os dinamismos explicitamente inscritos no campo eclesial autorizado, mas também os resultados da inscrição dos cristãos nos diversos movimentos sociais – observe-se o caso das “Semanas Sociais Portuguesas” e o seu contexto (António Almodovar). Esta dimensão de historicidade está presente na própria construção histórica da Doutrina Social da Igreja (Domingos Vieira).

Importa ter em conta os percursos de modernização e secularização destas sociedades que fizeram a experiência histórica do cristianismo. Usando a conceptualidade de N. Luhmann, dir-se-ia que esses percursos são de complexificação e especialização. Neste sentido, muitos dos papéis sociais assumidos por diferentes instituições cristãs foram apropriados por outros actores sociais e, num horizonte mais amplo, a esfera religiosa vê-se impelida a especializar o seu campo de acção e sentido, evitando o risco de colisão com os outros subsistemas sociais. Importa sublinhar que as lógicas de acção eclesial que visavam traduzir o impulso caritativo passaram a contar com dois factos novos: a emergência do Estado social e o aparecimento de saberes técnicos no domínio da intervenção social (Alfredo Teixeira).

As lógicas de acção que decorrem de motivações e indicativos cristãos, as que se explicitam no quadro da estatização do espaço social e as que traduzem uma apropriação técnica dos problemas sociais não têm que, necessariamente, se excluir. Mas também não deverão ser niveladas. Nos últimos anos, com concretizações diversas consoante os contextos nacionais, assistimos a trajectórias em que, por um lado, se estatizam lógicas de acção que tinham uma índole espiritual e, por outro, diferentes formas associativas e institucionais, enraizadas na tradição cristã, se convertem – por vezes, sem resto – aos modelos do Estado social.

Tal situação pode ser lida no contexto das trajectórias de secularização da ética da fraternidade cristã, na perspectiva interpretativa de Habermas. A autonomização dessa ética da fraternidade enquanto ética comunicativa poderia explicar algumas ambiguidades: por um lado, há dificuldades em reconhecer as marcas genéticas cristãs da actual consciência das questões sociais; por outro lado, as Igrejas caem na tentação de seguir a via de uma relegitimação social por via dos seus empreendimentos neste domínio.

Deve situar-se neste contexto o mal-estar que se descobre com alguma frequência entre os actores cristãos e nos dispositivos eclesiais com responsabilidades neste domínio. Este mal-estar decorre da dificuldade na definição do que é próprio da sua acção. Essa preocupação não deveria ser apenas cristã, uma vez que a criatividade social própria da “eclesiosfera” neste domínio, na medida em que se potenciam as suas competências próprias, pode introduzir novas vias de recomposição das lógicas de acção social, em benefício do bem comum (Henrique Joaquim).

A secção “Perspectivas” é preenchida, neste fascículo, por um estudo de Marie-Françoise Baslez acerca do problema da escravatura no mundo de S. Paulo e por um ensaio de Bart J. Koet que, a partir da hermenêutica visual de um tema na pintura flamenga, procura alargar o campo de leitura da categoria “diácono”.

 

Alfredo Teixeira, Maria C. Branco, Carlos Salema, Communio

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