Cinema: Redemption e terra de ninguém – duas obras nacionais em estreia

‘Redemption’, a curta metragem de Miguel Gomes, um dos mais aclamados realizadores portugueses da atualidade, estreia esta semana em complemento de ‘Terra de Ninguém’, longa metragem de Salomé Lamas. Duas obras nacionais que comportam profundas reflexões sobre a nossa identidade, nacional e europeia, com Miguel Gomes a pegar em pessoas reais e a transformá-las em personagens ficcionadas, com grandes interrogações para o nosso tempo.

Em ‘Redemption’, real e imaginário tocam-se a partir de material de arquivo que catapulta quatro histórias possíveis em diferentes tempos:

A 21 de janeiro de 1975, de uma aldeia recôndita no norte da metrópole para Angola, uma criança escreve uma carta aos pais retratando um Portugal separado dos horrores  da guerra por uma infância ainda possível.

A 3 de setembro de 1977, em Leipzig, República Democrática Alemã, uma noiva debela-se simultaneamente com o sentimento de felicidade que não lhe é óbvio naquele que deveria ser o dia mais feliz da sua vida e com a evocação de Parsifal, obra de Wagner que o próprio classificou de ‘festa de consagração do palco’ e em tudo aprofunda o tema da redenção.

A 13 de julho de 2011, Milão, um idoso mergulha na sua memória, como a do primeiro amor, e emerge na contradição de ter tornado a sua vida pública sem que no entanto se lhe conheça a intimidade.

Finalmente, em Paris, a 6 de maio de 2012, um pai interroga-se sobre o futuro da sua filha e sobre a vulnerabilidade do seu papel paternal.

Quatro grandes interrogações que ficam da hábil e extraordinariamente sensível combinação de imagens reais com a narração em voz-off, onde nos vemos e revemos como portugueses e europeus em história recente, com datas e lugares precisos capazes ainda de nos surpreender com um mistério: a quem reportam, concretamente aquelas personagens e de que redenção fala Miguel Gomes?…

Na longa metragem de Salomé Lamas, ‘Terra de Ninguém’, é Paulo quem conta a sua própria história: um homem sentado numa cadeira encarando a camara e habitando um espaço vazio que aos poucos se vai preenchendo com o reconto de si próprio. Importa menos a verdade dos factos que a forma como se lê a si mesmo, como busca e perde e torna a buscar a sua existência real e ficcionada. Uma história de vida e de morte, uma perpassando a outra, narrada e construída ao longo de quase oitenta minutos, em camadas que sobrepõem (e de onde às vezes caem) afirmações, interrogações, dúvidas, contradições. A vida de um mercenário português olhada por dentro, numa história humana e desumana cujo registo, documental, nem moraliza, nem condena, nem legitima e que certamente não interessará a todo o espetador. No entanto, encerra em si a grande riqueza de perscrutar a ideia de um homicida sobre si mesmo, a consciência de si, e, ao fazê-lo, inevitavelmente verificar a possibilidade do próprio determinar ou escusar-se a uma ética dos seus atos.

Será por aqui que, com tudo de diferente uma da outra, duas obras de dois realizadores nacionais que escrevem o nosso tempo se encontram: na possibilidade de redenção humana, na consciência de si e da sua história.

Margarida Ataíde

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