CIBERCULTURA – Sair da distopia digital

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Habitamos o mundo de entretenimento que consumimos. Os feelies, ou “cinema sensorial” do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley são, hoje, os TikTok que enchem a vida das pessoas de entretenimento. “Feelies” são pequenos vídeos que combinam a experiência visual à táctil para criar um ambiente imersivo e agradável. A intenção dos feelies consiste em aproximar a ficção da realidade, mas o preço pago pode ser o gradual aumento da incapacidade de distinguir a realidade da ficção. Reparem como tantas pessoas estão tão entretidas, que pensar torna-se raro e ceder aos que nos pedem coisas estranhas com a promessa de um vídeo viral passa a ser a norma. É isso que está a acontecer nos Estados Unidos com os estafetas de entregas da Amazon.

Imagem gerada pelo DALL-E com prompts de Miguel Panão

A jornalista Megan Garber fez notar esta onda num recente artigo; para o The Atlantic. Os clientes da Amazon começaram a pedir aos estafetas uma dança (Do a Dance) e estes, inocentemente, fazem o que os “realizadores TikTok” pedem, de modo a que estes possam tentar que os seus vídeos se tornem virais. E isso é o que as empresas que controlam as redes sociais pretende com a introdução das realidades aumentadas nas aplicações, isto é, que vivamos dentro das nossas ilusões.

Num outro artigo;, a jornalista da Vice, Gita Jackson diz que — «Transformar seres humanos reais, que aguentam condições precárias de trabalho para ter dinheiro para viver, em conteúdo, é desumanizante.» — Por isso, quando há algum tempo escrevia; sobre o fenómeno de padres a entrar no TikTok para chegar aos seus paroquianos ou aos mais jovens, fico agora a pensar se também na vida religiosa estaremos a perder a noção da realidade. Ou estarão os crentes a contar que a linha que separa a realidade da ficção fique ténue ao ponto de se tornar num instrumento de evangelização?

Em Agosto, Lisboa acolherá centenas de milhares de jovens que vêm participar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Será que haverá um pico de geração de Terabytes de informação, ou será como o que vemos no hino das JMJ em que não há uma só atenção dedicada ao ecrã (excepto para ver um mapa), mas toda a atenção se volta para o conhecerem-se reciprocamente, conhecer a cidade e as pessoas que nela habitam, cantando de braços abertos como tanto caracteriza o típico modo de ser do Português? Vale a pena ver e ouvir este hino. Se realmente estamos a caminhar para um “Admirável Mundo Novo”, onde o ambiente cibercultural assente no entretenimento se sobrepõe ao ambiente eco-cultural assente em relacionamentos face-a-face, qual o melhor testemunho que a Igreja poderia dar?

Pessoas reais. E não estou a referir-me à aplicação “Be Real”, mas antes a sermos no lugar e tempo onde vivemos, a personificação da realidade para além de toda e qualquer virtualidade. E em vez de usarmos os ecrãs e as Apps para comunicarmos, sermos nós próprios os meios daquilo que queremos comunicar. Marshall McLuhan dizia que “o meio é a mensagem”, mas se cada pessoa é o meio através do qual passa a mensagem que vive, então, “nós somos a mensagem”. Por isso, quem comunica, comunica-se. Mas o problema que muitos discípulos dos meios digitais aponta (e com razão) é que nós, como mensagem e testemunho, temos um alcance muito limitado. Porém, se pensarmos no exemplo de Jesus, ou dos Apóstolos após a Ressurreição, não tinham qualquer meio digital e tanto a sua vida, como o seu testemunho, chegou a todo o mundo. O que os apóstolos dos meios digitais podem responder (e com razão) é que a velocidade com que as mensagens circulam no mundo não é a mesma que no tempo de Jesus. E se não nos adaptarmos ao mundo de hoje, a Evangelização não acontece.

Nunca mais que esqueço um cartoon do Professor Pardal criado por Wlat Disney que dizia — «Invento tudo. O impossível só demora mais tempo.» Parece impossível voltarmos a ser pessoas reais que conseguem chegar a todos, independentemente dos meios digitais. Porém, é tudo uma questão “construtal”. Em 1996, Adrian Bejan, professor na Universidade de Duke nos Estados Unidos, formulou a Lei Construtal que diz — «para um sistema finito persistir no tempo (evoluir), deve facilitar as correntes que por ele atravessam.» — o resultado desta Lei são as redes dendríticas que vemos nas árvores, bacias dos rios ou mesmo nos nossos pulmões. A Evangelização não acontece porque as pessoas recebem informação. Os meios digitais facilitam a transmissão de informação, mas não a comunicação que as pessoas fazem de si mesmas. Contudo, nós temos redes de comunicação. Basta dar-lhes mais valor: as comunidades.

Se as comunidades viverem somente para si próprias, e não abrirem as portas dos relacionamentos entre as pessoas a novos membros, fecham-se os canais de comunicação inter-pessoal que possuem um efeito que nenhuma transmissão de informação possui: o efeito experiencial.

Duas pessoas que começam a fazer juntas um trilho numa floresta e não se conhecem, através de pequenas ajudas para superar as dificuldades do caminho, podem criar-se laços que duram para sempre. Se na comunicação digital se partilham experiências colectivas, quem por elas pode ficar tocado, sente-se induzido a desejar mais o encontro presencial para saciar a sua sede de comunicar-se, do que o saciar digital. Recordo a iniciativa que o meu amigo João Viana fundou em 2015 da Walking Mentorship, onde ele e o seu parceiro Nuno Santos Fernandes ajudam pessoas e grupos a encontrar os seus propósitos profissionais e até pessoais, usando a caminhada como método para realizar a mentoria. Nas fotos vêem-se sempre pessoas a caminhar em grupo, ou nos seus momentos de solitude, mas presentes no mundo real. Olhar para aquelas imagens suscita o desejo de estarmos ali onde estão. Os pequenos filmes não saciam sensorialmente, como os feelies, mas impulsionam a sair e sentir os passos com os pés assentes no chão. Só a vida real poderá ajudar-nos a evitar o colapso da distopia digital em que vivemos e o efeito experiencial que as comunidades possuem é insubstituível.


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