CIBERCULTURA que nasce do SABER APRENDER

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Há algum tempo que esta Rubrica de opinião na Ecclesia se dedica ao Saber Aprender que nos caracteriza como parte das qualidades evolucionárias que nos tornaram humanos. A nossa evolução dependeu sempre da capacidade de nos relacionarmos uns com os outros, mas, sobretudo, depende daquilo que aprendemos uns com os outros. Por outro lado, para além do conteúdo daquilo que aprendemos, importa também o modo como aprendemos. Daí a importância de “Saber Aprender” para continuarmos a fazê-lo de forma contínua ao longo da nossa vida. Porém, como o resultado de saber aprender influi sobre aquilo que fazemos, criando cultura, não é difícil dar o passo de reconhecer que uma parte cada vez mais relevante da geração de cultura acontece através da nossa vida e ambiente digitais. Nesse sentido, ao longo dos últimos anos parece-me ter visto crescer o impacte que a cibercultura tem sobre a espiritualidade. Por isso, creio ter chegado o momento da Rubrica dedicada ao Saber Aprender evoluir.

Imagem criada pela Inteligência Artificial DALL-E

A cibercultura emerge da influência que as tecnologias de informação têm sobre o nosso quotidiano, mas também a partir da vivência das comunidades virtuais que nasceram da Era da Internet. O Dicionário de Oxford Online define cibercultura como — «as condições sociais trazidas pela automação e computação.» — Mas o Dicionário da Herança Americana amplia este significado para — «a cultura que nasce do uso das redes de computadores para a comunicação, o entretenimento, o trabalho e o negócio.» Nem todos se identificam com estas definições porque o computador e a internet podem ser meramente mediadores na cibercultura, não o seu berço. Aliás, o mais próximo da realidade que todos vivemos é a da cibercultura como um movimento de geração de estilos de vida a partir da imersão da atenção de tantas pessoas num ambiente digital assente em tecnologias de informação. No entanto, parece-me haver ainda uma lacuna na interacção entre cibercultura, mundo físico e espiritualidade que me leva a pensar quando Jesus disse — «Pai, chegou a hora!» (Jo 17, 1) — e aceitar que o SABER APRENDER evoluísse para CIBERCULTURA.

Desde cedo que o ser humano é capaz de ler, fisicamente, os sinais dos tempos. — «Quando vedes uma nuvem levantar-se do poente, dizeis logo: ‘Vem lá a chuva’; e assim sucede. E quando sopra o vento sul, dizeis: ‘Vai haver muito calor’; e assim acontece. Hipócritas, sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis reconhecer o tempo presente?» (Lc 12, 54-56) — Mas essa capacidade está em permanente actualização porque a evolução cultural acontece a um ritmo bem mais elevado do que a evolução natural, exigindo a procura incessante de um novo equilíbrio. Por outro lado, ao nos confrontarmos com as crises culturais que vivemos, existe um momento oportuno escondido em cada crise que poderia servir de oportunidade para amadurecermos se soubermos ler, em tempo útil, o kairos (o tempo certo, tempo oportuno) que esses momentos representam.

Na “Tarde do Cristianismo”, Tomáš Halík refere estarmos num — «período da lenta metamorfose do ateísmo em subsequente apateísmo, a indiferença religiosa.» (Paulinas, 2022, p. 63), sendo a palavra evidenciada um neologismo que resulta da síntese entre apatia e ateísmo. Isto é, Deus não me interessa, ainda que me pareça não existir. E essa onda pode estar ligada com o tipo de evolução cibercultural que temos assistido nos últimos anos. A internet oferece um mural quase infinito de conteúdos cujos algoritmos ajustam ao que nos interessa para captar a nossa atenção.

Um dia, um amigo e professor de informática quis perceber até que ponto são estes algoritmos eficientes. Assim, entrou pela primeira vez no TikTok e foram precisos uns minutos apenas para que os algoritmos se adaptassem aos seus gostos e começassem a mostrar conteúdo que iria mais ao encontro dos seus interesses. A inteligência artificial que interage com a inteligência humana é capaz de entreter esta última num intervalo de tempo cada vez menor, demonstrando a possibilidade de nos conhecer melhor do que nos conhecemos a nós próprios. Por isso, a cibercultura poderá ser já um fruto da interacção entre a nossa mente e os algoritmos. Até que ponto pode o nosso pensamento estar já afectado por aquilo que os algoritmos nos induzem a pensar é, para mim, uma questão em aberto. Por outro lado, será, também, que a vivência espiritual é afectada pela vivência ciberespacial?

Desde o início do novo século que o uso da internet aumentou mais de 1300%, significando isso que mais de metade da população mundial usa a internet. As últimas estatísticas apontam para que um utilizador, ao nível global, gaste em média quase 7h a navegar pela internet por dia, ou seja, pouco menos do que um terço do dia, equivalente ao número mínimo de horas para uma boa higiene de sono ou próximo do tempo gasto num dia normal de trabalho. O jornalista Nicholas Carr no seu livro “Os Superficiais” reflecte sobre o que a internet está a fazer aos nossos cérebros, modernizando o que Marshall McLuhan já havia intuído relativamente a cada novo “meio de comunicação” (medium): transforma-nos porque não só fornece matéria para pensar como modificam o próprio processo de pensamento. E no contexto “internético”, Carr reconhece — «o que a Net parece estar a fazer é lascar a minha capacidade para a concentração e contemplação.» — Pelo que, parece-me ver nesta e outras experiências como a cibercultura possa influenciar a nossa vivência espiritual.

Em “Sharing Faith Online”, o jesuíta Sean Salai s.j. partilha a experiência online que fez com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio durante a pandemia. — «Eu descobri que, quando os Cristãos vão para além da visualização individualizada de vídeos para discutir questões mais profundas em grupos online, eles ficam mais confortáveis com a conversação espiritual e desejam partilhar a fé mais profundamente tanto offline como online, um sinal de esperança para a evangelização digital.» (p. 12, New City Press. 2022). Mas não sei se passou o tempo suficiente para sabermos se o impacte gerado por essa experiência será duradoiro ou não.

A cibercultura é uma realidade incontornável e irreversível no âmbito da Evangelização Nova (porque se renova com a cibercultura), e não tanto uma Nova Evangelização porque a mensagem não muda, só o modo como a partilhamos com os outros. O tempo para descobrir os valores intemporais que nos permitem viver com as tecnologias de informação, sem estarmos demasiado dependentes dessas, é agora. Precisamos desses valores para compreender o que significa ter uma vivência ciberespacial saudável e profunda. Não depende apenas do uso, mas do modo como o nosso ser se deixa transformar por isso.


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