CIBERCULTURA – O subtil papel quaresmal do discernimento

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Neste período de reflexão sobre o caminho que juntos trilhamos neste mundo, um dos aspectos subtis inerentes a qualquer processo de conversão em tempo quaresmal seria o desenvolvimento da nossa capacidade de discernimento. E mergulhados como estamos num mar imenso de distracções informativas, mais valiosa e relevante se torna esta capacidade.

Imagem criada por DALL-E de Inácio de Loyola em atitude de discernimento com prompt de Miguel Panão

Há dias uma colega minha diante de uma sugestão de trabalho, confessou-me como estava já assoberbada de afazeres nas suas 24h do dia e nas 24h da noite. Foi a forma desabafada de me dizer que as solicitações para terminar relatórios, trabalhos relacionados com o ensino e investigação era tanta que deixou de distinguir o dia da noite. Não é o que acontece aos trabalhadores do conhecimento quando passamos demasiado tempo dentro de quatro paredes e diante de um ecrã? A cada instante do tempo-sequencial temos diante de nós inúmeras escolhas, mas a necessidade de cumprir tarefas e atender a urgências sistemáticas parece minar a nossa capacidade de discernir.

Iñigo de Loyola era um soldado exímio que procurava animar as tropas na defesa de Pamplona quando a sua perna foi atingida por uma bala de canhão. Voltando ao seu castelo em Loyola para se curar, viu-se confinado ao leito, aborrecido e sem nada para fazer. Pensou em ler um romance para passar o tempo, mas na sua casa haviam apenas dois livros. Um sobre a vida de santos e outro sobre a vida de Cristo. Iñigo ou Inácio de Loyola deitado por longas horas após a leitura entrava em devaneios de dois tipos. Num deles travava grandes batalhas, ganhava a admiração de uma senhora nobre e tornava-se em alguém prestigiado do reino. No outro tipo de devaneios imaginava-se como um novo São Francisco ou São Domingos, a lutar contra o príncipe do mal, dedicando a sua vida ao Senhor e pedindo a Maria, mãe de Jesus, que fosse a sua rainha.

Na sua autobiografia, Inácio de Loyola, fundador dos Jesuítas, diz que o primeiro tipo de devaneios deixava-o deleitado no início, mas com o tempo, depois de os esquecer, sentia-se seco e infeliz. Quanto ao segundo tipo, imaginando-se santo, ainda que isso envolve-se alguma austeridade, o sentimento que deixava era de felicidade e alegria. Este foi a sua primeira experiência do discernimento dos espíritos a que somos sujeitos durante todo o dia, toda a vida.

As pessoas reconhecem cada vez mais que no mundo cibercultural hodierno passam muito tempo diante de ecrãs, nas redes sociais ou grupos de mensagens, a ler notícias ou ver vídeos ininterruptamente no TikTok, e não me recordo de haver alguém que no final demonstre no rosto um ar e olhar feliz e alegre. Não ficou saciado, mas desgastado pelo consumo de conteúdo a mais. Por outro lado, quem passa o tempo a responder a e-mails ou cumprir tarefas de administração académica, quando, supostamente, deveria dedicar o seu tempo a trabalho mais criativo e de investigação, na sua cara espelha a exaustão que não lhe permite distinguir o dia da noite.

Discernir os caminhos que nos levam à felicidade e à alegria não é fácil quando existem pessoas (das crianças aos idosos) que carecem do nosso cuidado, ou trabalhos e prazos que não sendo realizados ou cumpridos, afectam a vida de muitas outras pessoas. O sentido de responsabilidade parece levar-nos a discernir por aquilo que não ilumina o rosto, fazendo-nos sentir que não tínhamos outro remédio senão escolher o que não consola ou preenche interiormente. Talvez não sejamos tão livres nas nossas escolhas como pensávamos. Porém, ninguém nasce a saber discernir, mas a saber recomeçar sempre.

A conversão ao discernimento seria a abertura do nosso coração a dilatar o tempo que dedicamos às pausas durante o dia para pensar na nossa vida. Em tantos momentos de pausa (filas de espera, paragens de transportes ou trajetos, etc.), poderíamos abdicar do gesto quase imediato de tirar o smartphone para ver a última mensagem ou reagir com a nossa. São vários os motivos modernos distractivos em que o falso espírito se manifesta e nos afasta da escuta interior da voz de Deus-Trindade que permanentemente comunica connosco. Porém, se educarmos a nossa vontade a abraçar a pausa (ainda que sintamos tédio) para dar lugar ao verdadeiro espírito que nos aproxima de Deus-Trindade, acabamos por dar espaço ao tempo de pensar naquilo que realmente é essencial. E o essencial está em desenvolver a atenção ao coração (como totalidade do nosso ser feito de razão, emoção e oração) que faz desabrochar a capacidade de discernir. Prevejo que essa capacidade aponte cada vez mais para escolhermos fazer cada vez menos coisas, privilegiando as mais essenciais que devolvem ao rosto e olhar a felicidade e alegria que dá sentido ao viver.


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